Diante da atual situação de “guerras e rumores de guerras” (Mt 24,6), de um sistema financeiro que não cessa de dar mostras de que há muito tempo já é global e de que agora está se reorganizando freneticamente; diante de uma angustiante “avalanche” de narrativas, muitas vezes contraditórias, que apresentam-se como explicações definitivas – e às vezes “redentoras” – para um contexto histórico extremamente complexo como é o atual, o cidadão médio começa a perceber que a esperança do homem deste nosso tempo vem sendo alimentada há mais de dois séculos por promessas de segurança e de felicidade afiançadas por “ventos” científicos, filosóficos e tecnológicos que foram se apresentando à sociedade desde o século XIX – Darwin, Freud, Nietzsche, Marx, a locomotiva a vapor, a impressão, o motor elétrico, a lâmpada, o automóvel – como mananciais de prosperidade material, de bem-estar humano e até mesmo de progresso civilizacional.

 

A verdade é que hoje o cientificismo nos esmaga emocionalmente, colocando as “verdades” dos “especialistas” acima da vida e da liberdade humanas; a má filosofia, desarraigada dos clássicos gregos e muitas vezes hostil a eles, tenta mergulhar nossas mentes em uma espécie de histeria coletiva, em que muitos “ao mal chamam bem, e ao bem, mal” (Is 5,20); e, finalmente, a tecnologia, apesar de ser uma força neutra, que em si não é nem boa nem má, vem sendo claramente instrumentalizada, utilizada como meio de controle de massas.

 

Espantado, confuso e ansioso, o cristão moderno vê seus dias serem continuamente preenchidos com a sensação de ter caído em uma espécie armadilha, que o levou a crer numa divinização deformadora da ideia de homem, e a descrer o pecado e o demônio, estes que desde todo o sempre foram inimigos ferozes da única criatura feita à imagem e semelhança de Deus (Cf. Gn 1,26). O Ocidente teve os alicerces de sua arquitetura a tal ponto sacudidos e avariados que agora, para evitar a barbárie, precisa empreender um completo retorno. Mas retornar para o quê? É preciso retornar não para algo, mas para alguém cuja existência foi, por assim dizer, progressivamente volatilizada na sociedade ocidental, o que permitiu que essa mesma sociedade fosse então fraudada por uma tenebrosa ilusão que a levou a crer que uma libertação irromperia gloriosa no exato instante em que bradasse “Eu não servirei” (Jr 2,20). É de vital importância que o homem retorne para Deus! E que expressão melhor para sinalizar um retorno do que a palavra “conversão”? “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Cf. Mc 1,15), foram as palavras que ecoaram em muitos templos católicos por ocasião da imposição das cinzas na quarta-feira que dá início à Quaresma. Nosso povo necessita converter-se; porém, necessita também recordar que não há conversão sem luta, sem batalha.

 

Em seu 5º Sermão sobre a Quaresma, São Bernardo de Claraval discorre sobre a luta da carne e do diabo contra o homem espiritual e sobre a utilidade da oração. Falando inicialmente sobre a carne, nascida e nutrida no pecado, corrompida e viciada pelos maus costumes, o santo abade cisterciense nos diz que ela “por isso luta tão cruelmente contra o espírito; murmura com tanta frequência e não suporta a disciplina; sugere o mal, não se submete à razão, nem lhe assusta temor algum” (nº1). E, com realismo, Bernardo discorre em seguida sobre o modo de agir do inimigo da nossa salvação: “A ela [à carne] se une e vem em auxílio a astuta “serpente”, e dela se serve para atacar-nos. (…) Trama continuamente a maldade, instiga os desejos da carne (…), amarra-nos com nosso próprio cinto, espanca-nos com nosso próprio bastão, para que a carne que nos foi dada como ajuda converta-se em perdição e em laço” (nº 2). Assim age o diabo, que não podemos ver, devido à sua natureza espiritual e à sua astúcia, aprimorada pelo contínuo exercício de sua malícia. Entretanto, está em nossas mãos não nos deixarmos vencer, porque Deus não permitirá que nenhum de nós seja abatido contra a própria vontade, já que, como recorda o abade de Claraval, “o inimigo é capaz de despertar o impulso da tentação, mas, se queres, tu podes dar ou negar o consentimento. (…) Se o inimigo incendiar o teu apetite de comer, sugerir-te pensamentos de vaidade, ou de impaciência ou te excitar a lascívia, tu, simplesmente, não consintas. Quantas vezes resistires, tantas serás coroado” (nº 3).

 

Ânimo para a luta! Isso é o que algumas vezes nos falta, já que os tempos modernos tentam a todo custo inculcar em nossos corações um pacifismo surreal, que não faz parte da ordem da natureza, muito menos da sadia história humana. Ser pacífico e promover a paz é evangélico (Mt 5,5.9), mas ser pacifista é antinatural, é promover o entorpecimento de nossas forças interiores a ponto de se tornarem amolecidas como o chumbo, ao invés de resistentes como o aço. Ser pacifista é deixar-se arrastar pela corrente dos acontecimentos como um rato morto boiando no fluxo de um cano de esgoto. Não te entrega sem luta! Resiste! Sai para fora do esgoto em que a carne, o mundo e o demônio te meteram! Esta é a mais importante das Quaresmas, porque é a Quaresma do presente; não é a do passado, que já não existe mais, nem será a do futuro, que ninguém sabe se verá sob a luz do sol. Esta é a mais importante de todas, porque enquanto estiveres consciente, podes, no dizer de São Bernardo, ter “sempre à mão o refúgio inexpugnável da oração” (n.4), que te protegerá das tentações da carne e dos ataques do demônio. E o mesmo santo abade nos exorta: “Irmãos, não desprezeis vossa oração. Eu vos digo que Aquele a quem oramos tampouco a despreza. Antes que saia de vossa boca, Ele já ordena que seja escrita em Seu livro. Podemos esperar, sem dúvida alguma, uma dessas duas coisas: dar-nos-á o que pedimos, ou o que Ele sabe que nos convém. ‘O Espírito vem em socorro de nossa fraqueza, pois não sabemos o que pedir’ (Rm 8,26). A oração nunca é infrutífera” (n. 5).