Imagine qual seria o tamanho da miséria de um homem que descobrisse que seu sistema de crenças, isto é, que tudo aquilo que servia de bússola para indicar a direção de seus atos, gostos e consentimentos foram frutos de uma artimanha. Ou pior que isso, que aquilo em que creu em sua existência não foi por escolha, que ele sequer teve a oportunidade de imaginar o universo além do seu mundo condicionado. Quanto remorso sofreria se, sustentado por tais valores, cometesse falhas irreversíveis?

Deixemos de lado esse quadro imaginativo, para retomá-lo em futuro breve, e entremos na conversa do dia: Estamos vivenciando tempos de uma paz de curto prazo, do tipo que anestesia a consciência com agradável torpor, mas que antecipa fortes dores quando o efeito da dormência passar. Estou me referindo sobre a manipulação da informação, a atual forma de domínio das massas.

Esse fenômeno não ocorre somente na nossa querida Terra de Santa Cruz, mas aqui, em especial, existe a peculiar situação de se proibir, ou dificultar, que as pessoas saibam que vivem em um ambiente controlado por meio da construção intencional, porém sutil demais para ser facilmente percebida, da opinião pública, a reguladora da sociedade. As sociedades são engenhos humanos, elas não existem no mundo natural, são fruto de um conjunto de convenções e costumes entre os homens. O desenho das competências e funcionamentos das Instituições, o ordenamento jurídico e os modos de agir e pensar são criações. Isso é um fato de conhecimento de poucos, porque os sujeitos que participam da organização civil estão distraídos demais com a trama. Existe, porém, um pequeno grupo que sabe disso, sendo esse fator o que o diferencia das massas.

Existem muitas formas de se classificar coletivamente um povo, sendo a ideia de massa e elite talvez a mais comum. A noção mais disseminada sobre essas expressões é de que a massa é o povão, formada pelos pobres, sempre maltratada, ou melhor, oprimida (termo que a esquerda adora usar) pela classe rica ou média, que é a elite. Tal visão é imprecisa e distorcida.

As concepções mais adequadas ao uso dessas duas palavras são as que definem massa como o grupo que não possui cultura (falo de alta cultura, não de cinema, festivais folclóricos ou músicas), que seus estudos se restringem aos aspectos relacionados à profissão e que recebe passivamente as informações, enquanto elite, por sua vez, representa os buscam ativamente entender sobre o que ouve, vê e sente, reagindo aos estímulos do mundo de forma mais consciente sobre suas causa e efeitos.

Neste prisma, vê-se massa em meio à alta classe social, ou seja, ricos ignorantes e elite entre pobres, pessoas de alta cultura sem dinheiro. O poder aquisitivo seria mais um elemento, tal como o carisma e a fama, com uma função secundária, a serviço do poder intelectual. Deste modo, quem tem grana até consegue articular de maneira facilitada, o que o ajuda a empurrar suas ideias e planos, mas ter dinheiro não inscreve ninguém na categoria de elite ou de massa. Não à toa que há exaustivos exemplos de indivíduos apoiando quem quer destruí-los, a classe média brasileira faz de tudo para a sua própria ruína, pois acredita não prestar muito, assim como a classe religiosa aplaude a roupa seminua do filho e permite que pule carnaval só para não ser chamada de carola, porque ser religioso é feio.

O mencionado ambiente controlado da opinião pública é exatamente onde vivem as massas, sejam ricas ou pobres. Para esse público é oferecida a paz à moda brasileira, sem divergências de pontos de vista, tampouco visões ideológicas que se chocam constantemente. É a cara dos painéis de debate que passam nas grandes emissoras de TV, onde todos os convidados concordam entre si (não sei por qual motivo chamam de debate). Tudo é estável e previsível, pois todos conversam sobre os mesmos assuntos e com praticamente a mesma opinião. As notícias chegam filtradas por suas fontes e seguidas de precisas instruções sobre o que aceitar ou contra quem lutar ferozmente (às vezes o próprio parente é uma ameaça perigosa). Esse é o local onde estão os homens de espírito domado.

As elites, bem formadas moralmente ou viciosas, ricas ou não, não gozam de tal paz, tudo é conflito que precisa ser enfrentado, vivem em um mundo de possibilidades, uma constante tensão sobre qual melhor escolha tomar. Tais pessoas estão no mundo real e são, dentro de suas capacidades, livres porque sabem o valor dessa liberdade de escolha.

O homem-massa paga um preço muito alto no final, semelhante ao caso de ficção comentado no começo deste artigo, uma ilustração de alguém que sente o peso da anestesia se desfazendo, seja em vida ou diante de Deus. E você, amigo leitor, já sentiu a paz reservada para as massas alguma vez? Eu já.

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