Num arroubo poético, em 1922, Lima Barreto afirmou que “o Brasil não tem povo, tem público”. A frase estava inserida num contexto futebolesco, mas acima de tudo, num espírito brasileiresco, país do futebol (e do carnaval).

Somos uma gente que se reúne para assistir à seleção ou o time do coração, para fazer carnaval de rua e até manifestações com torcida — como no futebol — e muita farra — como no carnaval (eu devo ser um péssimo brasileiro, pois nada disso me satisfaz o apetite da alma). João Camilo de Oliveira Torres, grande conhecedor do brasileiro, como Lima Barreto, acreditava ser o futebol a síntese do espírito brasileiro. Não ouso em discordar do mestre, mas tenho a impressão de que o carnaval não fica a desejar no quesito representatividade de nosso público… ops… povo. Nosso povo adora uma batucada, um remelexo, um bole-bole, uma fantasia de Pierrot. E sabe de uma coisa? Os Pierrots têm sempre uma lágrima de tinta estampada na face. Assim é o brasileiro: como um palhaço tomado de paixão, mas triste.

Depois de sermos público em tantas folias, voltamos para nossas casas, pensando no quanto nos divertimos, no quanto ganharemos com nossos esforços hercúleos, no quanto sonhamos, queremos, merecemos. E tudo se arrefece novamente, e o público volta a ser público, cada um em seu cantinho sagrado, pensando em si mesmo. “O Brasil de hoje quer absolutamente pacatez”, lia Plínio Corrêa de Oliveira em cada coração verde e amarelo, ainda em dezembro de 1982. Passa a linha do tempo, mas tal fleuma, indolência, apatia, morbidez não passa.

“O mineiro só é solidário no câncer”, satirizava Otto Lara Resende. Sabemos que todo o brasileiro é assim, um tanto mineirão. Somos a grande Minas do Otto. Mas que diabo de câncer é esse que nunca é o suficiente para causar solidariedade? Nos deram uma porca república e ficamos de público, cuspiram e defecaram nossa bandeira (e ficamos de público), furtaram-nos a educação (e ficamos de público), vilipendiaram nosso Deus (e ficamos de público), desmoralizaram nossa política (e ficamos de público), criminalizaram nossa representatividade (e ficamos de público), sequestraram nossos filhos, como o Flautista de Hamelin (e ficamos de público), desarmaram cada homem (e ficamos de público), calaram-nos a voz (e ficamos de público) . . . e passa uma copa do mundo, e outra, alguns carnavais (nada do hexa), e tudo na mesma: uma grande lágrima de tinta em nossas bobas faces festivas, marcando data para a próxima farra, cada um com a camisa de seu time, com o abadá de seu bloco. Que diabo de câncer é esse que nunca é o suficiente para causar solidariedade? Insisto.

E para que a crônica não esgote os toques e torne-se novela, completo a fala do Plínio, acima citada com parte ocultada: “O Brasil de hoje quer absolutamente pacatez. Se a esquerda vitoriosa não souber oferecê-la, esvanecer-se-á. Se o centro e a direita não souberem conduzir sua luta num clima de pacatez, terá chegado a vez deles se esvanecerem.”

Ficaremos medindo tumores cancerígenos a cada dia, na espera do maior, do intolerável aos limites de nossa pacatez? Até quando seremos público?

Anderson C. Sandes, 19 de novembro de 2021