O NOME

– I –

Peçanha ficou deveras preocupado com a missão que a mulher havia lhe dado. Escolher o nome para o cachorrinho seria uma tarefa extremamente difícil. Naquela manhã seguinte à feira, ele pensava assim:

“Uma coisa é escrever meus artigos jornalísticos e até me aventurar na literatura de vez em quando com minhas crônicas, como adrede faço lá nos jornais. Outra coisa é escolher um nome para o cãozinho da Letícia; é uma responsabilidade muito grande, porque ela sabe que eu vou querer fazer disso um ato grandioso, de investigação etimológica e cultural do sentido dos nomes, e coisas assim”.

E finalizava: “Letícia sabe mesmo como me instigar e me desafiar. Dar a mim essa missão é para realmente me fazer pensar em praticamente tudo ligado à nossa vida, para escolher um nome que seja único, que signifique exatamente o que vivemos, e que se materialize no cãozinho.”

O cachorro era fêmea. De tão empolgada que Letícia ficou na hora em que o pegou na feira (ou melhor, segundo ela, no momento em que foi escolhida pelo animalzinho), ela nem parou para olhar o sexo. Aliás, para ela isso pouco importava – essa era a verdade.

E eis a razão pela qual o primeiro nome no qual Peçanha havia pensado, Dosto, em homenagem ao grande escritor russo, já não seria possível: era um nome masculino. “Ademais, Dosto seria um nome muito singelo, muito simplório, e sequer retrataria algo ligado a mim, à Letícia e ao cachorrinho”, refletia ele.

Por isso Peçanha resolveu criar um método, para poder chegar à escolha do nome para a cachorrinha. Montou um organograma sistemático no qual levaria em conta os seguintes dados: a) dia da semana do ocorrido; b) local onde estavam; c) circunstâncias culturais. A mistura desses três componentes certamente o faria chegar ao nome perfeito.

Com relação à letra a, ele sabia ser um sábado. “Se a feira tivesse sido num domingo seria até melhor, porque a cachorrinha poderia se chamar Sunday, ou mesmo Dominga,” pensou, ao melhor estilo do clássico Robinson Crusoé, que deu ao nativo que encontrou na ilha do Caribe onde a história se passava o nome de Sexta-Feira (Friday, no original), ou então à moda do Homem Que Era Quinta-Feira, de que Chesterton falava.

“Mas sábado não combina… Não posso usar esse parâmetro.”

Então Peçanha passou ao critério da alínea b: a feira havia acontecido no distrito rural da cidade, uma localidade que se chamava Fazenda Albuquerque.

Ela possuía esse nome em homenagem à família de imigrantes portugueses que primeiro se estabeleceu na região, há quase 200 anos, e que prosperou muito no passado. Quem vivia lá sabia de cor e salteado as histórias envolvendo o nome da família. E os que moravam na cidade a qual o distrito estava vinculado também conheciam o nome da Família Albuquerque.

“Uma vez eu li um livro com estudos sobre as regiões brasileiras e a sua genealogia. Ele abordava, em um pequeno capítulo, especificamente os Albuquerque. A família praticamente povoou a região onde fica o distrito, e ainda hoje há muitos descendentes deles por lá”, lembrava Peçanha. “Mas como usar o nome da localidade para chegar ao do cãozinho? Isso continua uma incógnita para mim”, pensava.

Restavam então os aspectos culturais, o item c. Eles eram muitos, e iam desde os gostos literários de Peçanha até as preferências culinárias de Letícia, por exemplo. Imagens, símbolos, personagens, tudo isso poderia ser levado em conta no trabalho de escolha do nome da cachorrinha.

Peçanha lembrou-se de quando era criança. Ele havia crescido em um ambiente onde sempre havia cachorros, com uma casa com um amplo quintal, na vida interiorana que viveu antes de rumar para a capital para estudar e ganhar seu pão.

A sua mãe, falecida há alguns anos, tinha o hábito de colocar nomes próprios nos cães, e ainda hoje Peçanha se lembra do Carlos, o cãozinho malhado que viveu uns cinco anos com a família até morrer atropelado, da Débora, a cachorrinha poodle que chegou já com quase uns dez anos e morreu de velhice, e do Alfredo, o pastor alemão que era o cão de guarda da casa.

“Mas não posso colocar nome de gente em um animal. Isso seria muito óbvio”, Peçanha pensou. E seguiu na sua saga matinal de escolha do nome da cachorrinha.

– II –

Letícia resolveu que naquele dia faria o almoço. Já havia muito tempo que não cozinhava. Ela sabia que o marido adorava a sua comida. Então, pouco depois do café da manhã saiu para comprar os ingredientes no supermercado. Faria um risoto, daqueles tipicamente italianos, com arroz arbório.

Deixou que o marido ficasse sozinho em casa, saindo da rotina de irem sempre juntos ao mercado. Ela sabia que ele deveria estar quebrando a cabeça na tentativa de escolher o nome da cachorrinha. “Aposto que o Carlos até inventou um esquema para chegar à escolha do nome, meio que adotando um método próprio com itens a serem seguidos. Se bobear, até planilha ele deve estar fazendo… Depois eu digo que ele é sistemático e ninguém acredita em mim”, pensou, se divertindo por dentro.

Quando chegou do supermercado e entrou em casa deparou-se com o marido sentado na poltrona na sala, cheio de livros de romance ao redor, e com a cãozinha no meio de suas pernas.

“Oi, Letícia. Está difícil chegar ao nome. Estou buscando inspiração nos personagens literários”, explicou-se Peçanha.

“Amor, deixa de bobagem. Não precisa de tudo isso para escolher um nome. Deixa que depois eu penso em algo, e pronto. Não faça disso um tormento.”

“Negativo! Eu não abro mão. Espere mais um pouco que daqui a pouco eu resolverei a equação. Agora isso é questão de honra para mim.”

A mulher olhou para o marido com aquele sorriso típico que fazia suas covinhas aparecerem e, beijando-lhe no rosto, disse: “Tudo bem. Então você me dê licença, que vou começar a preparar o almoço para nós dois. Farei o risoto que você gosta. Se prepare, que hoje você vai comer bem – e ainda pode beber o resto da garrafa de vinho branco que vou usar para cozinhar o camarão”.

O marido se surpreendeu: “Puxa, risotto ai gamberi! Você sabe mesmo como me fazer vontade. O que houve, está querendo me agradar, é? Vai querer o que em troca? Espero conseguir pagar”, falou ele, com um ar malicioso que fez Letícia dar uma risadinha.

Peçanha adorava cozinhar. Considerava-se de forma exagerada um chef amador, sempre experimentando novas receitas e criando tantas outras, até acertar na mão e no toque final dos ingredientes. Em todas as ocasiões usava a mulher como cobaia.

Ele a chamava de sua “provadora oficial”.

Ainda se lembrava quando estava bem no início, aprendendo ainda a mexer com as panelas, e apresentava um prato para a esposa. Ela comia um pouquinho e dizia com muito cuidado, com receio de chateá-lo: “Hmmm, está um pouquinho salgado. Mas está bom”, e ele sabia que estava ruim. Certa feita ele fez um macarrão que pretendia estar al dente, e a mulher disse, rindo da cara dele: “Carlos, al dente não significa que a massa faça ‘crec-crec’ quando a gente mastiga. Tem que deixar cozinhar mais um pouco”.

E daí hoje, tendo superado em muito suas próprias expectativas quanto aos seus dotes culinários, até mesmo descobrindo um talento que guardava escondido dentro de si, vendo Letícia ali naquele momento avisando que faria o almoço, Peçanha perguntou: “Quer que eu ajude, picando o alho e a cebola? Não esqueça de colocar a salsinha e a cebolinha no final. E a manteiga, ela deve…”

Letícia interrompeu o marido: “Carlos, calma. Deixa isso comigo. Já disse que hoje vou fazer tudo. Também gosto de ter meus momentos na cozinha. Continue aí na sua saga investigativa do método de escolha do nome da cachorrinha.”

Virou de costas e foi em direção à cozinha.

Peçanha olhou para a mulher. Ela vestia uma calça jeans clara, que realçava a sua silhueta, e uma camisa de manga comprida. Estava com os cabelos soltos. Percebeu como eles haviam crescido mais ainda, desde a última vez em que ele havia reparado. Estavam já chegando na cintura, do jeito que Letícia queria.

Havia tempos que ela dizia ao marido: “Como me arrependo de ter cortado meu cabelo! Era para ter apenas aparado, mas acabei me empolgando lá no salão e pedi para cortar um pouco abaixo do ombro. Agora vai demorar muito até crescer”.

Peçanha não ligava. Achava até charmoso o cabelo mais próximo ao ombro, com a franjinha que a mulher estava usando à época. Ele falava: “Você está linda, não se preocupe. Não pense que o cabelo ficou feio”.

Mas não adiantava. Ela dizia que estava feia, e que queria o cabelo de volta, do jeito como era antes: grande, volumoso, quase até a cintura. Exatamente como sempre usou.

O marido pensava: “Mas como pode essa mulher ser assim? Será que não percebe como é bonita? Como pode se sentir feia? Qual o problema de mudar um pouco o cabelo? Ela ficaria linda de qualquer jeito…”.

– III –

Depois da conversa com a esposa nesse vai-e-vem culinário, e agora que a via se afastar em direção à cozinha, Peçanha olhou para a cachorrinha, que nesse momento dormia em cima do tapete da sala. Ela não devia ter mais do que alguns poucos meses, e passava uma imagem de paz e tranquilidade, dormindo assim tão profundamente.

De fato, não era preciso muito para escolher o nome da cãozinha. O animalzinho era da Letícia; ele a escolheu. Peçanha ainda via a cena da  mulher se agachando para pegá-lo ao perceber a mordidinha do animalzinho no canto da bota, dizendo, decidida: “É esse. Agora ele é meu”.

Pois foi por causa disso que Peçanha resolveu mudar abruptamente a sistemática. Para escolher o nome da cachorrinha ele teria que pensar sobre a própria esposa. Letícia era uma mulher cheia de amor; a vida dela toda transbordava amor. Amor pela família, amor pelo marido, amor pela vida que levava, amor pelas pequenas coisas que faziam parte da sua rotina e do seu dia-a-dia.

Certamente ela amaria a cãozinha da forma mais intensa que conseguisse. E com certeza seria amada de volta por aquela cachorrinha que Peçanha via dormir suspirando tão tranquila no tapete da sala.

Então, quase como que ouvindo um estalo na sua cabeça, imediatamente veio à sua mente o nome do cão.

Pegou o animalzinho no colo e dirigiu-se rapidamente à cozinha, onde estava Letícia, pois queria contar à mulher que havia conseguido cumprir a missão. Deparou-se com a cena da esposa cortando cebolas, de avental, com os olhos todos molhados.

Ao ver o marido irromper pela porta da cozinha, a mulher virou-se e enxugou as lágrimas, ajeitando os longos cabelos castanhos claros e dando um sorrisinho.

“Puxa, amor, por que veio para cá? Não gosto que me veja assim toda desarrumada”, disse Letícia.

Peçanha falou, em tom de brincadeira:

“Não chore, meu bem. Sentiu tanta saudades de mim assim?”, e enlaçou a esposa pela cintura, emendando: “Então vou deixar que Vênus faça companhia a você; tenho certeza que ficará feliz e parará de chorar.” E colocou a cachorrinha no chão, aos pés da mulher.

Ao ouvir esse nome, Letícia se lembrou de quando o marido lhe explicou, um dia desses, que Vênus era a deusa do amor no panteão romano, e que representava o ideal de beleza feminino, equivalendo à Afrodite na Grécia. “Você é a minha Vênus”, ela lembrava ele repetindo.

Para Peçanha, nada mais justo que a cachorrinha se chamasse Vênus. De fato, seria quase como um processo natural: se Letícia era o amor na forma humana, o amor materializado, se ela era a sua Vênus, como ele sempre dizia, então a cachorrinha que a escolheu para ser sua dona, a humana a quem ela amaria até o fim dos seus tempos, também seria esse mesmo amor.

E assim Vênus integrou-se de vez à família.