“Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.”

 – Evangelho de São Mateus 26,41

Segundo a tradição católica, a origem do Santo Rosário se dá numa disposição da Providência Divina e do encontro de ações de pessoas inspiradas pelo Espírito Santo que, pelo seu amor, entrega e devoção, fazem do Rosário um intercâmbio entre a natureza humana contemplada pela Graça santificante com Deus, através de Maria Santíssima. Também cabe-nos dizer que todos os Mistérios do Santo Rosário são embasados, além da Tradição, nas Sagradas Escrituras.

Podemos destacar o papel fundamental de São Domingos de Gusmão, que, recebendo o Rosário da própria Virgem Maria, utiliza-o como uma arma espiritual para vencer heresias, como foi o caso da heresia albigense.

A IMPORTÂNCIA DESTA REFLEXÃO E A HERESIA ALBIGENSE

Inspiro-me nos Mistérios do Santo Rosário (Gozosos, Luminosos, Dolorosos e Gloriosos) – em especial nos Mistérios Dolorosos, neste caso – para contrastá-los com a tentação dualista-gnóstica, que é o veneno próprio da Serpente que nos induz, a todo momento, a negar primeiramente toda a bondade de Deus e do mundo criado por Ele, e, num próximo momento, desejar incessantemente destruí-lo mediante o endurecimento de nossos corações e das paixões desenfreadas.

A heresia albigense (ou cátara) desenvolveu-se no sul da França e possuía um conjunto de doutrinas gnósticas e dualistas que negavam a boa criação de Deus.

Afirmavam que o mundo material não foi criado ex-nihilo por Deus num ato de bondade, mas por uma divindade má emanada pelo próprio Deus, o Demiurgo – causando, assim, o dualismo.

No princípio, portanto, não era o Verbo, mas uma divindade emanacionista que, ao dividir-se, prende suas partículas em todo o mundo material emanado pelo Demiurgo, fazendo com que as criaturas racionais apenas possam acessá-las através da negação e da destruição do mundo prisional demiúrgico. Os albigenses foram ferrenhos combatentes contra a concepção da vida humana, do casamento, da procriação, etc. Afinal, se o mundo material emanado pelo Demiurgo era o mal em si, logo, pelo ato procriador, estaríamos espalhando o mal, impedindo que os “puros” alcancem toda a plenitude da boa divindade aprisionada na matéria má.

Diferindo desta quimera dualista, pessimista e destrutiva, que, sem dúvidas, inspirou, em sua base, boa parte dos regimes totalitários que conhecemos atualmente, a meditação do Santo Rosário e dos Mistérios faz com que reestabeleçamos, em nossas vidas, o devido senso de proporções entre à bondade da criação e às concepções racionais do bom sofrimento.

Afinal, todo constructo gnóstico atenta-se diretamente ao sofrimento humano e à condição de contingência. Pois, como dito, por acreditarem que o mundo criado por Deus é, na verdade, fruto de um demiurgo aprisionador, não podem, de fato, conceber que o mundo material pode ser compreendido pela inteligência e, portanto, é possível conhecer a Deus pelos seus efeitos (criação).

Se estamos presos cosmicamente, nossa inteligência (incluindo os sentidos sensíveis) nos engana a todo momento. Do mundo físico nada conhecemos, senão que, sendo o mundo fruto de um caos primordial nada ordenado, estamos à mercê de sua brutal mutabilidade. Logo, o único modo seria destruí-lo e superá-lo para que, num próximo momento, pudéssemos gozar de uma espécie de felicidade imanente ou alcançarmos, pelos nossos próprios esforços ascéticos, a unidade com a divindade que está acima do Demiurgo.

É claro que esta posição não se sustenta racionalmente, pois, se nada conhecêssemos efetivamente do mundo real, nossa existência, inteligibilidade, história, cultura em geral, etc., seriam inconcebíveis de todos os pontos de vista. Entretanto, a tentação dualista-gnóstica cerca-nos a todo momento, faz-se presente em inúmeras revoltas pessoais e no anseio vicioso em querer resolver todos os problemas do mundo através da aceleração de sua destruição, para que se possa emergir uma ordem a posteriori que resolverá todos os nossos problemas. – Sereis como deuses (Gn 3,5).

OS MISTÉRIOS DOLOROSOS E O BOM SOFRIMENTO CONTRA A TENTAÇÃO REVOLUCIONÁRIA

Optei por meditar acerca dos Mistérios Dolorosos em relação à gnose e ao movimento revolucionário, pois este Mistério destaca bem à suprema realidade da crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo e toda a relação íntima e existencial que temos com Ele. Como apontado, a tentação gnóstica odeia o sofrimento, e, longe de apresentar um bom senso de proporções, promete mundos e fundos através de uma superação falsa e quimérica. Já a reflexão dos Mistérios Dolorosos, traz-nos, com profundo realismo, o modo próprio de vivermos à nossa condição contingente e como devemos buscar, diariamente, o encontro com Nosso Senhor, que por nós sacrificou-se.

PRIMEIRO MISTÉRIO: CONTEMPLAMOS A AGONIA DE JESUS NO HORTO DAS OLIVEIRAS

Neste primeiro Mistério, contemplamos a agonia mortal de Nosso Senhor, quando suou sangue no Horto das Oliveiras. Quando diz: “vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca”, de modo algum corrobora com a maldade do mundo criado, mas exorta-nos que a oração e a vigilância livra-nos das tentações do maligno. O demônio está sempre à espreita para que digamos “sim” a ele e ao pecado e “não” a Deus. Desse modo, uma vida de orações e de vigilância, entregue à vontade de Deus, é todo o modo o que disse Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Nosso Senhor suportou todas as dores e tristezas dos pecados da humanidade e foi obediente ao Pai.

Ora, a desobediência primordial de Adão e Eva causou o Pecado Original. E, em contraste com o exemplo de Cristo, o movimento gnóstico romantiza o pecado, dizendo que não foi um fato, mas apenas uma libertação de Adão em relação ao Demiurgo.

A agonia de Cristo simboliza a nossa agonia e a nossa vontade de querer superar todas as nossas misérias de maneira imediatista. Contudo, sua agonia e sofrimento mostra-nos o realismo do amor e da entrega ao Bem Eterno. O sofrimento também é a lapidação da alma, sua maturidade e docilidade ao Bem.

SEGUNDO MISTÉRIO: CONTEMPLAMOS A FLAGELAÇÃO DE JESUS, AMARRADO À COLUNA.

No segundo mistério, contemplamos o sofrimento, a flagelação, a humilhação e o escárnio sofridos por Nosso Senhor. Todo esse sofrimento e humilhação foi por nós, pecadores que, diferentemente d’Ele, fugimos destas condições lapidadoras e criamos diversos subterfúgios orgulhosos para negarmos que somos miseráveis! Não raras vezes o sofrimento e a humilhação (o famoso engolir sapos, como dito popularmente), simbolizam o bom sacrifício ao próximo. Sofremos e nos humilhamos por algo acima de uma determinada situação concreta. Passamos o que passamos para um bem substancial e maior, além da nossa vontade desviada e de nossas paixões de momento. Para Deus, tudo isso tem um grande valor, conquanto deixemos que Ele nos mostre a Sua Vontade e, através da Graça, podemos contemplá-Lo neste sentido.

Já o mundo, o diabo e a carne, nos oferecem subterfúgios covardes e falsos! Afinal, com efeito, o demônio NUNCA cumpre aquilo que promete. Somos tentados a todo momento a compensar nosso sofrimento com prazeres momentâneos, pecados de estimação e relativismos torpes. Afinal, se o mundo criado é o mal em si, de nada adiantaria o sacrifício e o amadurecimento da alma mediante o bom sofrimento, mas uma vida de hedonismo puro e simples. Um absurdo de todos os pontos de vista.

Ser flagelado junto a Cristo, por amor e confiança em Sua designação, faz com que a nossa inteligência repouse suas dúvidas cruéis na dócil Verdade.

TERCEIRO MISTÉRIO: CONTEMPLAMOS A COROAÇÃO DE ESPINHOS DE JESUS

No terceiro mistério, meditamos sobre a coroação de espinhos de Jesus, seguindo o seu sofrimento, humilhação e flagelação pelos nossos pecados. Cada espinho da coroa simboliza os nossos pecados e, cada gota de sangue do corpo de Nosso Senhor, simboliza o Seu amoroso perdão. Sua face foi coberta por sangue; o mesmo sangue que nos levou e limpou dos pecados. Sua dor resgatou-nos da morte eterna; e assim se segue em todo sacrifício incruento da Santa Missa.

Posição inconcebível aos moderninhos soberbos que reduzem a História Sagrada de Nosso Senhor ao mais pueril materialismo e hedonismo possível. Destes pontos de vista, o sacrifício de Nosso Senhor só poderia advir de uma pessoa sádica e maluca (mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. – I Corintios, 1).

Nosso Senhor, coberto de sangue e sem reclamar de sua condição, era escarnecido pelas massas “Salve o rei dos Judeus”, diziam jocosamente. Neste instante, estavam afirmando o poderio secular de César em detrimento da autoridade espiritual de Nosso Senhor. Assim também testemunhamos na modernidade (e pós-modernidade). O império secular reinventa-se, traveste-se de diversas ideologias num corpo subcultural demoníaco, e, como não poderia ser diferente, atenta-se contra a única Verdade que há: O Corpo Místico de Cristo.

QUARTO MISTÉRIO: CONTEMPLAMOS JESUS COM A CRUZ ÀS COSTAS, A CAMINHO DO CALVÁRIO.

No quarto mistério, contemplamos a via dolorosa. Nosso Senhor, carregando a Cruz, também carregava o peso dos pecados de toda humanidade. “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Evangelho de São Lucas 9,23).

As cruzes diárias, que devemos aceitar por amor e humildade a Nosso Senhor, são o caminho para a redenção e salvação. E quantas vezes caímos em negação pelos vícios de fazermo-nos de vítimas? Quantas vezes negamos a Cristo e afirmamos o nosso mundanismo e relativizamos a verdade? Quantas vezes dizemo-nos cristãos, mas abraçamos com certo bom grado o constructo gnóstico?

Este Mistério contemplando a Via Dolorosa, mostra o sentido mesmo das nossas vidas. Suportar, mediante a Graça (e não pelos nossos próprios esforços), todo sofrimento, tentações e fraquezas com firmeza e virtude, não apenas por temor à Justiça de Deus, mas por amor a Ele. Árdua batalha, incessante, contínua, diária, dolorosa… mas tão completa e cheia de sentido objetivo.

Somos chamados, como ensinava Viktor E. Frankl, a não criar subjetivamente o sentido da vida, mas encontra-lo naquilo que há de objetivo na realidade. E o cume desse sentido, sem sombra de dúvidas, é a crucificação de Nosso Senhor e todo o caminho percorrido por nós nesta vida até o encontro final com Ele.

QUINTO MISTÉRIO: CONTEMPLAMOS A CRUCIFICAÇÃO E MORTE DE JESUS

No quinto mistério, contemplamos a iluminação da Cruz de Cristo em nossas vidas. Por amor à Sua criação, suportou dores tremendas, humilhou-se, tudo por nós. A vida por excelência de todo cristão, portanto, é abraçar e honrar a Santa Cruz.

Diferentemente do subjetivismo espiritualista, que nos tenta a esvaziar o sentido dos dogmas e da história sagrada, a Cruz de Nosso Senhor traz-nos aquilo que é verdadeiro. E, nada mais verdadeiro, para nós, os momentos em que nos vemos em extrema solidão, junto à nossa Cruz e nada mais, e conseguimos perceber à verdadeira companhia de Cristo em conjunto com nossa Mãe Santíssima. Pois, a saber, “junto à Cruz de Jesus estavam de pé sua Mãe, a irmã de sua mãe, mulher de Cléofas, e Maria Madalena” (Evangelho de São João 19,25). A Virgem Maria jamais abandonou seu queridíssimo Filho, assim como também jamais nos abandonará. Através da Virgem, mediadora pelos méritos de Cristo, somos capazes de suportar a nossa Cruz, pelo Santo Rosário.

“Tudo está consumado” (Evangelho de São João 19,30), disse Nosso Senhor em seu sacrifício, entregando o seu Espírito. Por conta desse cume histórico, desse grande momento, encontramos o verdadeiro sentido. Todos os nossos sofrimentos, angústias, temores, desejos dispares, etc., são unificados e entregues como forma de sacrifício a Nosso Senhor, pela remissão dos nossos pecados. Fora dessa máxima realidade, temos os prazeres da carne e do mundo que podem nos levar à danação eterna. A questão das escolhas, aqui, entra como um meio para um determinado fim já dado em nossa natureza. A eternidade é inescapável, entretanto, são as nossas escolhas livres que determinarão o que seremos em completude. Ou seja, se seremos salvos para contemplar a face de Deus por toda eternidade ou seremos privados da verdadeira felicidade, pois ficamos cegos enquanto a percorríamos neste vale de lágrimas.

Ao creditar tudo neste mundo – por conta das falsas promessas dos falsos profetas –, estamos afirmando taxativamente e livremente que não queremos a Deus. E cuidado com o que se pede: pois se pode conseguir!

CONCLUSÃO

Considerei esta reflexão importante não apenas para mostrar que o caminho mundano, imanentista e gnóstico é falso, mas também para alertar que de nada adianta afirmarmo-nos “cristãos” se não abraçamos com bom grado a nossa dor, sofrimento, angústias e, num impulso da vontade, oferecemos a Nosso Senhor como um sacrifício constante e pessoal. A nossa consciência pode ser fortalecida e expandida através do Santo Rosário e pelos sacramentais, mas é preciso utilizá-los todo santo dia! Não podemos, diante da situação em que vivemos neste mundo louco, ser negligentes e fracos em relação à fé! Ou somos católicos ou não somos! Ou estamos com Cristo ou não estamos! Não há meio termo, relativismos e subjetivismos bem vernizados que podem suprir esta decisão.

Viver no mundo, é claro que sim! Mas não ser do mundo. Tudo o que Deus fez é sumamente bom, pois tem o Ser por participação, mas também saber que tudo o que existe não é o Ser em Si é essencial. Conhecer a Deus pelos seus efeitos, contemplá-lo em tudo o que é possível no tempo e no espaço, sem perder o senso real da imortalidade de nossas almas, é o senso de proporções necessário para se ter uma vida plena de sentido. Caso contrário, ao reduzir o Ser ao processo intramundano, temos a grande chance de perder toda a sanidade e, posteriormente, criar compensações psicológicas infindáveis para dar conta da nossa franca estupidez! Para estes, dizia-lhes Jesus: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem” (Evangelho de São Lucas 23,34).