Na Missa da Noite de Natal, a Primeira Leitura é tirada do Livro de Isaías, e começa assim: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,1).

Seria um exagero chamar de “atual” a primeira parte desse trecho do livro de Isaías? Teriam já, na atualidade, desaparecido essas “trevas”?

Não há como negar que o nosso mundo está envolto em guerras (declaradas ou não); desconcertado pela corrupção, pela injustiça e pela maldade; frustrado pela mentira e pela traição; num processo de uma cada vez mais rápida e assustadora descristianização; pasmado ao ver e ouvir escarnecedores da fé cristã e até adeptos do satanismo bramindo impunemente seus insultos (basta navegar pela Internet, assistir televisão, ou mesmo conversar com as pessoas na rua). Estamos num mundo em que a moral e a ética foram relativizadas e instrumentalizadas, em que a arte desvinculou de Deus o belo, em que o sacrilégio foi glamorizado (vide os tantos exemplos de uma dita “arte”, que se deleita com o desrespeito às personagens, às imagens e às gravuras religiosas). Alastra-se o hedonismo como uma peste endêmica, e o mundo joga na nossa cara todos os dias que não quer ouvir nada nem ninguém mais do que a si mesmo. Infelizmente, ainda não desapareceram as “trevas” deste mundo (“os homens preferiram as trevas à luz, porque suas obras eram más” – Jo 3,19). Vivemos em um tempo incomum, em um tempo cuja complexidade suprema exige que nos aproximemos ao máximo de Deus em nossa vida cotidiana.

Mas, conforme a segunda parte daquele trecho do Livro de Isaías, o povo “viu uma grande luz”. E por que razão viu essa luz, senão porque “um menino nos nasceu (…) e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz” (Is 9,5)?

Só há uma esperança: acolher Jesus, nascido para nós. Este é o ponto de partida absoluto para que sejam “despedaçados o jugo que pesa sobre nós, a carga posta sobre nossos ombros, o bastão do opressor” (cf. Is 9,3). Mas é fácil dizê-lo, e a questão não é dizê-lo, mas vivê-lo. Para consumar nossa comunhão com Jesus Cristo é necessária antes de tudo a fé, que parece ser a grande desconhecida dessa nossa civilização relativista e indiferente.

Matteo Ricci, o jesuíta que no final do século XVI fascinou a China anunciando Jesus, saiu da Europa e viajou mais de seis meses à mercê dos ventos, das tempestades e dos piratas antes de chegar lá, alimentando-se com comida avariada e bebendo água estragada, vivendo em navios cujas condições higiênicas e sanitárias eram inimagináveis para nós hoje. Ele não poderia tê-lo feito se não tivesse uma fé genuína, se não acreditasse que a Igreja é para nós o lugar da salvação, que ela é, no dizer do Vaticano II, a sociedade à qual nos incorporamos plenamente, unindo-nos a Cristo pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos, do regime e da comunhão eclesiásticos (Cf. LG 14). Para esses primeiros missionários, a viagem oceânica constituía uma espécie de prova iniciática que temperava o caráter e forjava definitivamente as vocações. Hoje todos sabem que podem voltar, todos podem contar com garantias e proteções, todos podem comunicar-se em tempo real. Ricci e seus companheiros não podiam. O seu único contato com a terra natal eram as cartas, mas elas levavam até um ano de tempo para chegar ao seu destino, e as respostas mais um ano para chegar às suas mãos. Esses homens encontravam-se desesperadamente sozinhos no outro extremo do mundo, mas não estavam nas trevas, porque viram a Cristo, nossa grande Luz (“a luz veio ao mundo” – Jo 3,19), com os olhos de fé. E seu caminho se iluminou. E o caminho dos que lhes deram ouvidos se iluminou.

Há que se considerar, entretanto, que a fé, além de convicção, é também graça, e como tal nos impele a renunciar a um discurso a seu respeito apenas ou principalmente em termos de programação, ou de redução da evangelização a uma questão de linguagem, o que levaria inevitavelmente a pensar que, ao final, são os homens que estão na origem da fé. Assim, tudo ficaria reduzido a uma operação humana. Isso seria uma transposição, em termos pastorais, do pensamento herege de Pelágio.

Sem dúvida, chegar a uma fé genuína exige de nós atitudes práticas, pois, como disse Guilherme de Saint-Thierry, abade cisterciense: “Depende do homem preparar sem cessar o coração, purificando a vontade de afetos estranhos, o entendimento ou a razão de preocupações, a memória das ocupações inúteis ou perturbadoras e às vezes também das necessárias” (Carta de Ouro, segunda parte – 251). Entretanto, é preciso também suplicar pela graça da fé. E mais: precisamos nos exercitar nessa virtude teologal, a fim de que, alargado o nosso coração, sejamos inundados pela graça.

Em nossa sociedade contemporânea existe um sistema altamente desenvolvido de formação profissional que levou a um altíssimo nível as possibilidades do domínio sobre as coisas. O poder do homem, no sentido do domínio do mundo, chegou a proporções quase vertiginosas. Quanto ao progresso qualitativo e quantitativo da fé, infelizmente a história é bem outra. Muitos de nós desaprenderam a caminhar na fé, porque já não sabem mais “dar as razões da sua esperança” (cf. 1Pd 3,15), não sabem mais em que creem os que creem no Cristo. Seguem vivendo numa espécie de religião sem fé, o que aliás é perfeitamente possível, haja vista as tantas espiritualidades que não supõem a fé. Alguns movimentos espirituais Orientais, por exemplo, não buscam esse ato de auto-transcendência, de encontro com o Todo-outro: Deus que me fala e me convida ao amor. Neles, diferentemente, é característico um ato de radical interiorização: não sair de si, mas descer internamente, libertando-se do jugo da individualidade, do peso de ser pessoa.

Insisto: só há uma esperança, que é acolher Jesus, nascido para nós. Assim, devemos olhar com atenção para o Natal, tempo da Luz (“a luz veio ao mundo” – Jo 3,19) e do Amor (“Deus é amor” – 1Jo 4,8), tempo do Deus que se fez carne e a quem devemos doar-nos, entregarmo-nos sem reservas, a fim de que se cumpra em nós a vontade d’Ele, infinitamente sábia, amorosa e pacificadora. Nós fomos feitos para algo muito maior do que comer, beber, gozar, rir na fortuna e chorar na adversidade. “Deus nos predestinou a sermos conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos” (cf. Rm 8,29).