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Através do Evangelho de São João, chegou até nós aquela oração de Jesus ao Pai – conhecida por muitos como “Oração Sacerdotal” de Cristo –, em que pedia pela unidade de seus discípulos: “Pai santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que sejam um como nós. Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim: a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17, 11.20-21). Olhando para a história da Igreja Católica, percebe-se o quanto essa preocupação de Nosso Senhor era genuína, pois de fato haveria divisões, rupturas de unidade, divergências de opinião e, o que é pior, heresias. É inevitável que a fé exija do homem um esforço de submissão e obediência, mas, por desgraça, nem todos aderem a esse esforço, e por isso São Paulo pôde dizer: “É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados” (1Cor 11,19). A heresia nasce do conflito, ou do contraste, entre a verdade revelada e os diversos sistemas de pensamento pelos quais se orienta a cultura humana. A rebeldia de tal cultura em relação à verdade revelada consiste no fato de que esta, pelo próprio fato de sua origem divina, apresenta necessariamente elementos que algumas mentes não conseguem aceitar. Já estamos numa tal situação de hegemonia cultural em que todo o pensamento da sociedade, e até de parte da Igreja, está tão perpassado, tão eivado de contestação e de rebeldia, que nós já não notamos mais que estamos no pleno andamento de uma revolução.

            Quando um documento, elaborado por uma comissão de “notáveis”, considera preocupante o estado de polarização na sociedade e na Igreja, quer dizer com isso o quê? Que não há bem e mal? Que não há certo e errado? Que não há ortodoxia e heresia? Apenas os boçais acreditam que a polarização é um fenômeno surgido no século XX. Só não há polos onde há uniformidade; porém, uniformidade não é o mesmo que unidade. Há que se notar a existência hoje em dia de uma evidente obcecação pela “comunhão”, e, por trás dela, a tácita confissão de que estão fracassando os planos de subversão dos princípios católicos mais fundamentais através da manipulação da linguagem, do adormecimento das massas por meio de uma eclesiologia heterodoxa, da inoculação de falsos dogmas através do “politicamente correto” e da “ressignificação”, além da velha tentação pelagiana de que o homem, com sua liberdade, é capaz de fazer o bem por si mesmo, sem auxílio sobrenatural, e com suas próprias forças, com a “luta”, evitar o pecado. Pelágio era, antes de tudo, moralista severo e intransigente, rigorista a seu modo; pregava o desprendimento das riquezas, a prática dos conselhos evangélicos da pobreza e castidade em todo o seu rigor, mas “deformou” a noção de graça, na medida em que propõe às almas um alto ideal de justiça, mas alicerçado apenas na liberdade individual.

            A distorção da realidade é uma das principais armas daqueles que desejam a uniformidade, em vez da unidade: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo” (Is 5,20)! Grupos da Igreja que abertamente apoiam uma “política de partido único”, e que insistem em considerar o comunismo como algo que não representa uma ameaça concreta à sociedade e à Igreja, não têm legitimidade nem dignidade suficientes para pregar unidade, porque, em sua paupérrima análise marxista da realidade, nunca conseguem emitir uma opinião sem antes estabelecer, ostensivamente ou discretamente, as categorias de “opressor” e de “oprimido”. Na mente comunista, tudo se resume à “luta”, seja entre classes, ou entre minorias e maiorias, ainda que para isso seja necessário implantar o ativismo judiciário e a glamorização da transgressão das leis, sejam elas civis, ou divinas.

            Quem tiver lido a obra “O Fausto”, uma peça de teatro do escritor alemão Goethe, recordará que, numa das cenas iniciais, Mefistófeles (o demônio) aparece para Fausto, que pergunta: “Quem é você”? E o demônio diz: “eu sou aquela força do mal que sempre produz vida”. O mal diz de si que produz vida, assim como a heresia quer dar ares de “a genuína unidade”, em contraposição às outras “unidades”, que seriam então ultrapassadas, rígidas, preconceituosas, anti-intelectuais, etc. O mal quer que o vejamos como uma dimensão cheia de criatividade, de vitalidade, de novidade, de leveza, de progresso. Seria como dizer: “transgrida, não proíba mais nada, dê asas à maldade e à contestação perpétua, e surgirá algo de bom”. O filósofo Hegel – também alemão –, na sua dialética, traz essa ideia para a Filosofia. Marx leva isso à prática, passa da teoria hegeliana para a prática (ou práxis), uma prática política em que matar, destruir, hostilizar, trazer abaixo a ordem, irá produzir uma ordem superior, uma “unidade” aperfeiçoada.

            Ao condenar o “bolsonarismo” e propor como alternativa o “lulismo”, certos grupos eclesiais deixam de manifesto o seu brutal cinismo – acusam outros de uso do sentimento religioso para fins políticos, como se eles não fizessem exatamente isso, e descaradamente – e oferecem hereticamente a “felicidade” de uma vida simples e natural através de um completo desprezo por comodidades, riquezas, apegos, convenções sociais e pudores, mas sem Cristo. No seio da Santíssima Trindade está Jesus, clamando ao Pai para que sejamos “um como Eles” (cf. Jo 17,11). E por quê? Para que “o mundo creia que o Pai enviou o Cristo” (cf. Jo 17,21). Eis no Evangelho de João as verdadeiras razões da unidade católica.