O bispo da diocese do Crato — terra natal de padre Cícero —, Dom Magnus Henrique Lopes, durante missa realizada na manhã do último dia 20 de agosto, no Largo Capela do Socorro, em Juazeiro do Norte, no interior do Ceará, anunciou que o processo de beatificação de padre Cícero Romão Batista na Igreja Católica foi autorizado pelo Vaticano. “Queridos filhos e filhas da Diocese do Crato, romeiros de todo Brasil, é com grande alegria que eu vos comunico nesta manhã histórica que recebemos oficialmente da Santa Sé, por determinação do santo Padre, o Papa Francisco, uma carta do Dicastério para a Causa dos Santos, datada do dia 24 de junho de 2022. Recebemos a autorização para a abertura do processo de beatificação do padre Cícero Romão Batista que, a partir de agora, receberá o título de servo de Deus”, disse Dom Magnus Henrique Lopes durante a celebração.

Trata-se de uma notícia alvissareira para os devotos daquele que é carinhosamente chamado de “Padim Ciço”, ou “Patriarca de Cariri” pela maioria da população local. Após nove anos, o Vaticano atendeu ao pedido do bispo Dom Fernando Panico, feito em 2015, e reconciliou o padre Cícero Romão Batista com a Igreja Católica. Com a reconciliação, não há mais fatores impeditivos para que o referido sacerdote, falecido aos 90 anos, em 20 de julho de 1934, seja reabilitado, beatificado ou canonizado, segundo o então Chanceler da diocese do Crato, Armando Lopes Rafael. Padre Cícero morreu deixando pendentes alguns desacordos com a Igreja Católica, após o caso conhecido como “milagre da hóstia”, ocorrido no final do século XIX. Segundo testemunhas, a hóstia dada por padre Cícero transformou-se sangue na boca de uma beata, logo após ela ter recebido a Comunhão. Trata-se da beata Maria de Araújo. Maria começou a vestir o hábito de beata aos 22 anos. Era um vestido e um manto, ambos de cor preta, que as mulheres poderiam usar após um período de formação e direção espiritual. Quando jovem, ela confessou ao padre Cícero que estava tendo visões de Jesus e de Maria. O padre pediu que ela fizesse uso de água benta, pois se fosse algo diabólico não voltaria a se manifestar. No entanto, as visões surgiram cada vez mais nítidas.

Na Quaresma de 1889, chegada a primeira sexta-feira do mês de março, dia dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, o padre Cícero havia reunido o grupo do Apostolado da Oração para fazer uma vigília de reparação a Jesus pelos pecados da humanidade, como era costume. Enquanto confessava os homens, oito mulheres ficaram em oração durante toda a madrugada. Ao amanhecer, padre Cícero percebeu que elas estavam cansadas e com fome. Decidiu então dar-lhes a Sagrada Comunhão, para que elas pudessem ir para casa tomar café. Naquele grupo de mulheres piedosas, achava-se Maria de Araújo, na época com 28 anos. Ninguém imaginava que, ao receber a comunhão, Maria de Araújo entraria em êxtase por mais uma vez. A Sagrada Hóstia colocada em sua língua se transformou em sangue, que escorreu pela boca a ponto de molhar seu manto e o chão da capela. Assustada e sem saber o que fazer, ela esperou o padre dar a comunhão às outras. Quando o padre Cícero guardou a âmbula no sacrário, Maria foi até ele, mostrando com aflição a mão esquerda manchada de sangue. Pegando um copo com água, padre Cícero purificou a mão da beata e também o chão, para não deixar vestígios do que acabara de acontecer. O fenômeno se repetiu ainda por várias vezes, geralmente às quartas-feiras e sextas-feiras, e o padre Cícero tentou esconder esse fato de todas as formas, fazendo a beata comungar separada das outras, mas não obteve sucesso, pois os moradores do lugar já anunciavam aos quatro cantos o acontecido, o que foi dando início a polêmicas e desconfianças e, mais tarde, desencontros com a hierarquia da Igreja.

A pesquisadora Maria do Carmo Pagan Forti, em sua conferência no V Simpósio Internacional sobre padre Cícero, ocorrido em 2017, afirma que: “As decisões [atuais] foram justas e justificáveis, porque, à época [dos desacordos], os únicos documentos que o Santo Ofício tinha para analisar o caso eram tendenciosos, assim como a própria decisão do bispo local, que já se antecipara em julgar o caso antes que um estudo apropriado fosse feito; contudo, isso não prova mais, nos dias de hoje, especialmente depois dos novos estudos desenvolvidos, que o padre Cícero fosse um embusteiro”.

Pode-se identificar, como objeto original de estudos sobre a contenda entre a hierarquia católica e o padre Cícero, a carta de 2015, assinada pelo secretário de Estado do Vaticano, Dom Pietro Parolin, em nome do Papa Francisco, e dirigida a Dom Fernando Panico, bispo da diocese de Crato: “O afeto popular que cerca a figura do Padre Cícero pode constituir um alicerce forte para a solidificação da fé católica no ânimo do povo nordestino (…). Portanto, é necessário, neste contexto, dirigir nossa atenção ao Senhor e agradecê-lo por todo o bem que Ele suscitou por meio do padre Cícero”. Uma Comissão de Estudos interdisciplinares, coordenada por Dom Fernando, foi responsável pelo documento a partir do qual a questão religiosa de Juazeiro foi revisada e pela abertura do processo de reabilitação do padre Cícero. A mesma comissão continua seus trabalhos e poderá, inclusive, dar mais passos rumo a um possível processo de canonização.

Haveria talvez quem perguntasse: “Como é que se pode discernir a verdade de um tempo passado, e trazê-la à luz tantos anos depois”? E a essa pergunta poder-se-ia responder com um texto de Machado de Assis: “Ah! Indiscreta! Ah! Ignorantona! Mas é isso que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. XXVII, “Virgília”).

Na mente de alguns dos mais importantes moradores e comerciantes de Juazeiro, a cidade morreu quando padre Cícero morreu; contudo, o legado de sua pregação, de sua postura fervorosa na defesa da fé católica e o contundente empenho na denúncia dos erros do mundo permanecerá registrado na História. Leia-se por exemplo, um trecho da entrevista que deu ao jornal O Povo, de Juazeiro do Norte, em fevereiro de 1931: “O comunismo — afirmou espontaneamente o Padre Cícero — foi fundado pelo demônio. Lúcifer é o seu nome, e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus contra o Criador e seus filhos. Conheço a Rússia desde a minha meninice e sei que ela é um campo imenso de assassinatos, cometidos por governos que querem destruir moral e mentalmente a nação. Lenine [ou Lênin] foi um sargento do exército e nada mais. (…) Só os seus discípulos consideram-no um grande homem. Os espíritos sensatos não pensam desse modo. O Partido de Lenine é o Partido do Anticristo, dito e anunciado por São João, no Apocalipse. E chegará a governar o mundo, quando faltarem três anos para o incêndio final, porque tudo isso está escrito nos livros santos…”.

Quando da morte do padre Cícero, os pessimistas começaram a cerrar as portas de suas lojas e a abandonar a cidade, cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer. Não há dúvida de que a estátua do clérigo em tamanho natural, erguida na praça da Liberdade, em 1925, era um pobre substituto do notório “Patriarca”. Mas, apesar dos pessimistas, padre Cícero está reabilitado, os romeiros continuaram a chegar, e a outrora insignificante aldeia continua a crescer. Sua população engloba (conforme estatística dos anos em torno a 2014) cerca de 80 mil habitantes, floresce sua indústria algodoeira, suas escolas aumentam, novas fábricas são instaladas e aqueles que herdaram a terra são testemunhas de um milagre, que aglutina o passado ao presente, e que parece fadado a continuar sendo o destino mais procurado do Nordeste brasileiro.