Hoje o mundo observa espantado a Guerra na Ucrânia, que no lado russo ganhou o nome de “operação especial”. Guerra de fato ou não, estamos assistindo um conflito de proporções inéditas no continente europeu em mais de 75 anos. A atual geração nunca vivenciou um conflito deste porte tão próximo e, para entender alguns aspectos sociais e culturais é importante olharmos para o passado em busca de pistas.

Justamente neste cenário é possível delimitar algumas semelhanças históricas que estão vindo à tona neste conflito, que ligam as estratégias do chefe de Estado Soviético Josef Stalin com o atual da Federação Russa Vladimir Putin.

Salvar um povo da opressão

Um dos principais discursos utilizados pela atual Rússia é que a guerra é motivada por uma missão de salvar russos étnicos e o próprio povo da Ucrânia, que são irmãos eslavos, de um regime tirânico, nazista e pérfido que está perseguindo e restringindo a liberdade das pessoas.

No ano de 1939, o embaixador soviético em Londres, Ivan Maisky, registrou em seu diário um motivo semelhante para justificar a invasão da Polônia:

“proteger a vida e as propriedades da população [polonesa]”.[1]

Na mesma época em Moscou, Molotov (sim, o mesmo do pacto ribbentrop-molotov) concordou dizendo que se tratava de uma operação de resgate para proteger os “irmãos de sangue” do povo soviético.[2] Mas a narrativa fazia parte de uma desculpa pragmática. Dias antes da invasão, o próprio Molotov admitira para o embaixador alemão em Moscou que tudo era um “pretexto” para a invasão do leste polonês.[3]

Voltando à 2022, Putin teria sido informado por sua agência de inteligência, a FSB, que o povo ucraniano receberia os russos com alegria para libertá-los da opressão. Esta informação consequentemente foi passada aos militares russos, que estes estariam em uma missão especial de libertação de um povo oprimido e necessitados de socorro, principalmente nas regiões do Donbas.

Quando os soldados russos entraram na Ucrânia a realidade era diferente do cenário anunciado e uma resistência não somente do exército ucraniano aconteceu, mas também a de civis que segundo a narrativa deveriam ser salvos. Registros em vídeo foram feitos de ucranianos que entraram na frente de tanques em alguns vilarejos para impedirem a passagem dos comboios do exército russo.

Cenário semelhante ocorreu na Polônia em 1939, quando os soviéticos ficavam chocados com o que presenciavam. O oficial da força aérea soviética Georgy Dragunov relatou[4]:

“os poloneses não precisavam de qualquer tipo de de ajuda [e] que aquilo mais parecia uma ocupação.”

“Disseram para nós que o país estava em crise, que a Polônia estava se desintegrando e que nós íamos estabelecer uma nova ordem.”

Outra similaridade que presenciamos nos dois casos é o choque de realidade e do poder de aquisição de bens particulares: Na Ucrânia, um cidadão foi capaz de rastrear o remanejamento de tropas russas (abril/2022) para o leste do país através de um par de fones de ouvido sem fio saqueados de sua casa perto de Kyiv. Em 1939, 0 Sr. Dragunov nos apresentou um relato semelhante:

“Vimos coisas que invejávamos. Alguns soldados eram filhos de trabalhadores e camponeses comuns, e perguntavam por que havia uma diferença tão grande no padrão de vida [entre a União Soviética e a Polônia]”.

A propaganda soviética enfatizava sempre a necessidade de os soldados do Exército Vermelho resgatarem seus “irmãos de sangue”, discurso parecido com o atualmente praticado pelo Kremlin.

Um exército mal equipado

Muitos relatos e informações que chegam das linhas russas, dão conta de soldados insatisfeitos com os equipamentos e suprimentos fornecidos pelo comando do exército para a “operação especial”. Existem também relatos de soldados russos saqueando mercados em busca de suprimentos devido a escassez.

Na invasão da Polônia de 1939, civis poloneses também ficaram chocados com as condições do Exército Vermelho, conforme relatou Anna Levitska que morava em Lwów[5]:

“Comparados ao exército polonês, eles eram muito malvestidos. Também tinham um cheiro meio estranho. Não posso comparar com nada. Era um cheiro forte e característico”

Ela ainda relatou que assim que chegaram, alguns dos soldados do Exército Vermelho começaram a roubar:

“Eles tiravam relógios e anéis das pessoas na rua, e brincos e crucifixos e cruzes. Eles adoravam relógios, não sei por quê. Talvez não tivessem relógios ou algo assim”

 O que podemos analisar?

Obviamente caro leitor, não podemos cair na tentação de cometermos aqui anacronismos históricos e dar uma mesma motivação para os acontecimentos do passado ao presente no campo de operações. Todavia, também não podemos deixar de observar as semelhanças de propaganda, motivos morais e culturais nos acontecimentos que aproximam tanto Stalin e Putin.

Os “pretextos”, como dito por Ivan Maisky, são os mesmos por razões sócios-culturais arraigadas à moralidade do povo russo, que estaria sendo manipulada em ambos os casos?

A desinformação do comando central soviético, conforme relatado por Georgy Dragunov, e o ocorrido atualmente pelo Estado russo perante suas tropas seriam meras coincidências e acasos?

Os relatos de uma tropa mal equipada e desorientada, conforme narrado por Anna Levitska, comparadas com as imagens de soldados russos famintos e mal equipados de hoje teriam uma ligação com o sistema de realidade “criada” pelos altos comandos para seus líderes?

Existem fatos que precisarão de um olhar cuidadoso nos próximos anos, para assim identificarmos se estamos presenciando meras coincidências ou se estamos assistindo o resultado dos mesmos motivadores que levaram aos mesmos erros históricos dos governantes do povo russo.

[1] Maisky Diaries, anotação de 17 de setembro de 1939, p. 225.

[2] Laurence Rees, Hitler e Stalin – Os tiranos e a segunda guerra mundial, p. 65

[3] Jan Gross, Revolution from Abroad, Princeton University Press, 1988, p. 11

[4] Laurence Rees, Hitler e Stalin – Os tiranos e a segunda guerra mundial, p. 68

[5] Laurence Rees, Hitler e Stalin – Os tiranos e a segunda guerra mundial, p. 67