Texto: Padre José Eduardo

Falando francamente, a República é um regime íntima e potencialmente golpista, e isso por quatro razões principais:

1) porque as Repúblicas modernas foram fundadas por golpes;

2) porque a história das Repúblicas são uma sucessão contínua de golpes: só no Brasil, tivemos a primeira república, a nova república (incluindo-se aí o Estado Novo), a república populista, o regime militar e a república nova, que dura até os dias de hoje. Isso significa que rupturas institucionais são fatos mais do que normais na história das repúblicas;

3) porque não há governo de oposição que não queira derrubar o governo de situação, valendo-se inclusive de instrumentos desestabilizadores, como a imprensa (foi isso que levou Getúlio Vargas ao suicídio, por exemplo – o país se tornou ingovernável e aquela situação tem profundas analogias com a situação atual);

4) e, por último, porque, na história das Repúblicas, há golpes para todo gosto: golpes parlamentares, golpes presidenciais, golpes militares, golpes judiciários, golpes eleitorais e até a conjugação desses, como golpes legislativo-mililares ou golpes judiciário-eleitorais.

Há golpes, inclusive, que são de tipos constitucionais, já que nenhuma Constituição prevê a sua própria extinção e se supõe, por isso mesmo, eterna. Neste sentido, projetos de “reformas constitucionais” ou de “reformas políticas” poderiam ser, e frequentemente são, chamados também de “golpes”. Só o Brasil já teve sete Constituições (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), sendo que a monárquica foi a mais duradoura, levou 65 anos. Como um país pode ter estabilidade política com tantas Constituições sucessivas? De fato, a República é uma forma de governo extremamente instável e isso tem seus prós e contras.

Por esses fatos, podemos observar com bastante facilidade que a história demonstra que dogmatismos em política são apenas ilusionismo retórico.

Contudo, mesmo no meio de tantos golpes, nunca se tinha ouvido falar de um “golpe popular”. De fato, se a democracia é o governo do povo, encarar a manifestação deste povo como algo contrário à democracia é uma contradição “in terminis”.

É evidente que a política transcende em muito a esfera abstratamente judiciária, pois se constitui pela interação real das forças, numa tensão permanente e concreta. Por isso, nenhuma vitória jurídica pode realmente impôr-se sem um lastro real. Não se trata de uma disputa de conceitos, mas de se enxergar a composição e a descomposição real das forças.

Por isso, mais do que aferrar-se a significados simbólicos, é preciso prestar atenção no comportamento da sociedade (tanto a favor quanto contra determinada situação) e é na medida em que esses dados se impõem como fatos é que se pode realmente aferir a legitimidade representativa. De outro modo, nenhuma autoridade pode suster-se, pois governar não é a mera encenação de um cargo com a sua liturgia, mas é ter a força de direcionar toda uma sociedade, mobilizando as vontades das pessoas reais em torno daqueles valores que se consideram e efetivamente são o bem comum da sociedade concreta.

Essas considerações parecem-me importantes e oportunas não tanto para excitar ou inibir ações mas para interpretarmos adequadamente as que estão em curso, sem cairmos em clichês ou xingamentos precipitados, coisa, aliás, muito comum em nosso país.