Recentemente a Revista Época (n 333, 04/10/2004) publicou uma entrevista — REPRIMIR NÃO RESOLVE — com a psicoterapeuta Mônica Gorgulho, Diretora da Associação Internacional de Redução de Danos (International Harm Reduction Association — IHRA) e ex-Presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC). Nesta entrevista ela defendeu a ideia de que repressão não funciona para reduzir os problemas de abuso de drogas e suas conseqüências sociais e apoiou programas governamentais para estimular “o uso seguro dessas substâncias”, políticas já seguidas pelo governo brasileiro nos últimos anos. “O Brasil é o único País da América Latina que adotou a redução de risco como política oficial”. As políticas “repressivas” do passado foram paulatinamente substituídas por outras nas quais predominam as distribuições de seringas, cachimbos para uso de crack e camisinhas, “numa atitude mais compreensiva com relação aos usuários de drogas”. A razão aparente é protege-los da AIDS e da Hepatite tipo C.

As antigas políticas repressivas foram identificadas pela entrevistada, bem assim como por todas as instituições e fundações internacionais ligadas às práticas da redução de risco, como oriundas de duas fontes. Em primeiro lugar, os usuários de drogas eram vistos como criminosos e submetidos a sentenças judiciais severas, inclusive prisão; em segundo lugar, e ela não vê nenhuma diferença entre elas, eram diagnosticados como doentes mentais e “submetidos” a tratamentos médicos. Dentro desta nova visão baseada em “estratégias mais avançadas”, eles passam a ser vistos como “cidadãos com seus direitos, que podem ou não cometer crimes e ter ou não alguma perturbação mental”. No entanto, ela repetiu diversas vezes, “redução de risco não significa legalização de drogas ilegais”. Mas para onde estas práticas apontam? Se não é para a legalização é pior ainda pois sugeririam aos governos agirem contra a lei! Sugerem ao Executivo desprezar as leis aprovadas pelo Legislativo e reforçadas pelo Judiciário! Na minha opinião a intenção é criar um fait accompli que, tornará impossível a não aprovação de novas leis que legalizem as drogas [1].

Examinando mais profundamente a entrevista — e a vasta literatura sobre o assunto — podemos verificar que tais argumentos não estão baseados na verdade, mas em meias verdades/meias mentiras. Meias-verdades são passíveis de gerar mais confusão e perturbação mental do que mentiras claras porque, enquanto as últimas são fáceis de perceber, o mesmo não ocorre com meias-mentiras. Estas não são facilmente identificáveis porque sua falsidade fica encoberta pela parte meia-verdade que serve para enganar.

Por exemplo, quem poderia discordar do pronunciamento inicial da entrevista, de que “a civilização convive com as drogas desde o início” e de que é pouco provável que no futuro possa existir “um mundo sem drogas”? Qualquer pessoa que conheça a História não pode discordar desta assertiva. É perfeitamente conhecido que a cerveja e o vinho existiam já entre os Sumérios. Os guerreiros árabes usavam hashish desde antes de Maomé e o mesmo foi largamente utilizado pela seita radical dos Assassinos, em árabe, hashishim. Muitas drogas foram utilizadas por várias culturas nos rituais religiosos. Poderíamos citar uma enorme quantidade de drogas utilizadas desde tempos imemoriais até o presente.

No entanto, não se segue que este argumento histórico possa formar uma sólida base para defender a legalização das drogas, na realidade são um non sequitur! A base é tão falsa que poderíamos dizer que matar não é crime, já que convivemos com assassinatos desde Caim. Poderíamos usar o mesmo argumento sem sentido, mas altamente persuasivo, a respeito de roubo, contrabando, escravização, tráfico de mulheres, pedofilia e quase tudo que nosso senso comum civilizado condena. A civilização é exatamente o oposto de aceitar o mal como o bem! A função das leis sempre foi limitar os impulsos destrutivos com os quais, não obstante, devemos conviver, já que fazem parte de nossa vida mental.

Claro que “legal ou ilegal são definições das sociedades”, como diz a entrevistada. Mas poderia ser diferente? Ela diz que certas drogas eram legais no passado e se refere ao ópio, que já foi moda nos EUA e na Europa, aonde os fumaderos chegaram a ser lugares chiques de encontro. Mas ela não diz uma palavra sequer das razões pelas quais o ópio foi proibido! Será que alguém, sem nenhum motivo ou razão tomou esta decisão? Ou não teria sido pelos grandes danos causados aos usuários e à sociedade em geral? Inclusive o caso do ópio nega totalmente a idéia básica de que repressão não funciona. Quem fuma ópio hoje em dia?

Outra meia-verdade é a comparação do uso de drogas com “trabalho em situações de extrema tensão, em ambientes insalubres” — a condição preponderante na atualidade — e até mesmo com fast food. Estas são afirmações para criar confusão na mente do ouvinte ou leitor, da mesma forma que apelar para “poderosos interesses econômicos contra a liberalização”. Como a entrevistada não identifica tais interesses citarei alguns: os laboratórios que produzem drogas “oficiais” para serem prescritas por médicos credenciados para tal. Tanto uns como os outros estão interessados na proibição para evitar a competição pelo livre mercado. Não obstante existirem riscos potenciais nestas drogas, eles são monitorados constantemente por cientistas e pesquisadores, ao menos até certo ponto. As autoridades da área de saúde freqüentemente relatam casos de danos e até mesmo proíbem certas drogas, retirando-as do mercado. Curiosamente, o mesmo argumento de “poderosos interesses econômicos” nunca é usado na outra direção, aquela dos defensores da legalização, que contam com somas astronômicas de dinheiro de poderosas fundações e ONGs. Seria apenas um desprendido interesse amoroso pela humanidade, sem prever lucros vultuosos?

Mas a medalha de ouro pelas meias-mentiras vai para o velho argumento de que “é a proibição que causa os danos”! Este é um argumento invertido — e pervertido —para convencer que não são os óbvios danos das drogas para os indivíduos e para a sociedade que levaram à proibição, mas pelo contrário os danos advêm da proibição e da ilegalidade! Não se pretende apresentar este argumento para debater livremente com a opinião contrária, mas ele é geralmente proferido como a única expressão da verdade absoluta que não admite contestações! No fundo, esta idéia tem a intenção de levar a civilização a abolir todas as leis, Constituições, tradições, religiões e qualquer coisa que seja um obstáculo à completa legalização dos crimes. Contrariamente ao conhecimento tradicional — de que as leis foram estabelecidas para inibir e punir crimes e abusos — mas que ocorre exatamente o oposto:  são as leis que causam os crimes! Portanto, uma sociedade sem lei seria o Paraíso na Terra, numa óbvia inversão de substância e definição.

Desses argumentos seguir-se-ia que o álcool ou o fumo, que são legais, não causariam nenhum dano ou prejuízo aos usuários e à sociedade. Estranho; pois os adeptos da redução de riscos consideram que estas drogas representam o mal absoluto! É impressionante como eles se utilizam simultaneamente de duas assertivas opostas entre si: as drogas não causariam dano algum se não fossem proibidas; ao mesmo tempo, drogas que são legais — até mesmo fast food! — são as mais perigosas de todas. Este é um exemplo da onipotência do pensamento que rege os mundos científico e intelectual: diga qualquer coisa, mas faça-o com firme convicção, que ninguém o contestará! Enquanto na lógica tradicional, idéias opostas mutuamente se excluem, nesta lógica ilógica são “dialeticamente” aceitáveis desde que sejam proferidas com enorme convicção. E se alguém contestar será imediatamente  considerado um ser desprezível e “ignorante dos mais recentes desenvolvimentos da ciência e da epistemologia”. A ambigüidade se torna a rainha da argumentação.

Interpretações enganosas de dados estatísticos são publicadas amiúde para provar que o fumo é a causa de maior número de doenças do que as drogas ilegais. Isso é verdade em números absolutos mas uma mentira quando examinamos os dados relativos. É verdade porque o número de fumantes excede em milhões o de usuários de drogas pesadas. É óbvio que o número de fumantes que adoecem e morrem, mesmo de causas não relacionadas com o fumo, seja muito maior. Enquanto as doenças de que sofrem os usuários de drogas sempre são causadas pelo próprio uso.

Uma outra conclusão nunca mencionada a se retirar destas estatísticas é que, se elas provam alguma coisa, é o fato de que a legalização aumenta enormemente o número de usuários, como seria de esperar racionalmente. O caso da Holanda é exemplar. Mas estes dados são anátemas e jamais devem ser mencionados. A proibição, na realidade, é que inibe usuários em potencial. Outras estatísticas que apontam contra a legalização são sistematicamente negadas. Como, por exemplo, em 1980, após as políticas liberalizantes do governo Carter, havia 25 milhões de usuários de drogas nos EUA. Após oito anos de administração Reagan e uma combinação de repressão com políticas educacionais, este número foi reduzido à metade, 12,5 milhões. Hoje já sobem novamente, após oito anos de Clinton, estando em torno de 15 milhões.

Deve a civilização aceitar sua destruição em nome da redução de riscos? Não seria, pelo contrário, aumentar os riscos através da liberalização de todas as drogas hoje proibidas?

Heitor De Paola, M.D. 20 de outubro de 2004

O autor é psicanalista no Rio de Janeiro, Brasil. Artigo originalmente escrito em Inglês e traduzido pelo próprio autor para publicação no site www.braha.net

Notas

[1] Para informações sobre as reais metas da “redução de danos”, por seus defensores, acessar o link http://www.braha.net/site/portugues/exibe.php?id=42&sec=1&n=n