“[…] a comédia é uma imitação dos nossos erros comuns, os quais o cômico representa da maneira mais ridícula e desprezível que se possa imaginar a fim de sustar qualquer desejo que um espectador possa ter de cometê-los”Sir Philip Sidney, Defesa da Poesia

I. Breve digressão necessária

A comédia é, certamente, a arte poética mais incômoda e mal compreendida de todas. E quando digo “é”, entenda-se “foi” e “sempre será”. Seja em forma de sátira, cantigas de escárnio, ou show de stand up, algumas de nossas paixões poderão ser alvos da linguagem cômica, e como todos temos um tirano adormecido — ou bem acordado — em nossos peitos, nos sentimos intimamente ofendidos e tendemos a toda sorte de reação, das mais justas às mais desproporcionais.

Agora imaginemos — e talvez nem precisemos imaginar — que os ofendidos têm meios e poder para a reação, e até mesmo para mudar o que se entende por comédia. Eis o velho cabo de guerra. Imaginemos mais ainda, uma boa mistura de: tiranos em nossos peitos, mal compreensão do que seja comédia, polarização ideológica, paixões das mais diversas, elites controladoras… BOOM! Temos o caldo cultural descrito. Meus leitores sabem que não acredito em “novidades”, acredito em “modas”. Tudo o que temos de vícios estabelecidos hoje, não surgiram hoje, apenas estão “na modinha”, por qualquer razão que seja.

Aristóteles assim definiu a comédia em sua Arte Poética: “A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo”. Perceberam? A comédia imita os vícios e costumes que podem ser ridicularizados, isto é, que podem provocar riso. É difícil medir isso? Caberiam aqui muitos “dependes”. Um desses “dependes” seria o público-alvo da comédia em questão. E quando as piadas rompem a bolha do público? Ai, ai, ai! Rompem as cadeias de nossos corações. Do teatro grego à internet, a comédia sempre rompeu as barreiras e, do teatro grego à internet, a comédia provocou riso, gargalhadas, união, alegria, liberdade . . . severidade, carrancas, desunião, confusão, prisões e até pena de morte.

Que faz a arte conosco? Que faremos nós com a arte? Ai, ai, ai! Apontemos alguns erros — apenas alguns — com relação à comédia, antes de algumas constatações e previsões.

II. Dos erros do respeitável público:

1. Confusão de imitação com endosso: o fato do comediante imitar vícios, de um ponto de vista saudável no estado da arte, não significa endossar tais vícios. Escrevi mais detidamente sobre isso em “Os influenciadores da inversão”, que podemos considerar um apêndice retroativo a este texto;

2. Confusão de intenção e atitude: a forma ou o desempenho do artista não representa necessariamente as intenções de sua arte. Ridicularizar e normalizar são coisas distintas;

3. Muita paixão e pouca reflexão: por ridicularizar e normalizar serem coisas distintas, é preciso cautela e sensibilidade — lembrem-se, estamos falando de arte — para filtrarmos tudo e chegarmos a conclusões comedidas da comédia — perdoem o trocadilho. De um ponto de vista aristotélico, as paixões — phatos — são capazes de mudar nosso julgamento, portanto, expormo-nos apenas às paixões, enviesa nosso juízo para com a obra.

4. Estar no lugar errado na hora errada: assim com um roqueiro que não gosta de pagode não frequenta um pagode, um espectador de comédia deve saber onde pisa. Existem comédias verdadeiramente boas e verdadeiramente ruins, mas o juízo do gosto não deve ser ignorado;

5. Esquecer que a arte reflete o tempo: bem sabemos que a vida imita a arte, mas outra verdade paradoxal é que a arte imita a vida. O artista, no caso do comediante, em nossa discussão, pode estar tratando de aspectos do espírito de nosso tempo que o espectador comum ainda não percebeu. Muitos artistas de vanguarda são mal compreendidos por esse motivo.

III. Dos erros dos engraçadinhos:

1. Utilizar-se da comédia como arma ideológica: Em “A arte é uma arma?” eu trato do assunto da arte enquanto arma e da importância dela na guerra cultural, mas nós, que cremos no Sagrado, temos freios morais que outros podem não ter, isto é, não vale de tudo no contexto da guerra cultural;

2. Chocar as cartas marcadas: como já dito indiretamente, a comédia tem gêneros para todos os gostos, mas sabendo disso, muitos comediantes, conhecendo seu público, trazem abordagens totalmente distantes desses, a fim de chocar a plateia, e o tiro pode sair pela culatra. É normal que comediantes “testem” o público e testem piadas novas em shows, mas alguns podem extrapolar no processo. Outros, mais sacaninhas, escolhem suas “vítimas” friamente dentro de seu próprio público. Daí podemos ver com frequência como um espetáculo de comédia vira um jogo de dardos;

3. Insensibilidade teimosa: Não se trata aqui de autocensura, mas saber escolher muito bem as suas batalhas e medir consequências. Liberdade de expressão serve para quem fala, mas também serve para quem reclama do que foi falado. Os bons artistas sempre souberam contornar os piores momentos da história, se chocam de modo insensível, ou é de propósito, ou por burrice. Quando o choque for socialmente necessário, os bons comediantes saberão muito bem fazê-lo e sairão incólumes;

4. Aproximar tanto sua arte da realidade que possa confundir o expectador: alguns gêneros de comédia podem sofrer com esse ponto, como o stand up. Pelo fato desses comediantes não se caracterizarem, parte do público pode não compreender a distância entre comediante-personagem e comediante-pessoa, ainda que até psicologicamente essa distinção seja complexa, em qualquer artista. O comediante tem um eu lírico, como qualquer poeta, e quando isso não fica claro, pode haver confusão — sim, lato senso, e até stricto sensu, o comediante é um poeta, e sua arte tem a chamada licença poética.

IV. Qual o destino da comédia, afinal?

A comédia continua permeando os mais diversos gêneros literários, desde os poemas satíricos, passando pela música, teatro e, atualmente, o cinema, que é a grande casa das mais variadas artes em nossos dias, como foi a ópera, o circo e o teatro em outrora — e ainda hoje, claro, mas menos fomentado comercialmente.

1. Cinema e TV: e aqui já temos a primeira das respostas: o cinema continua e creio que continuará a ser um baluarte para a comédia, apesar do politicamente correto, grande e antigo inimigo das artes. A comédia, que possui muitos subgêneros, pode ser também um “gênero auxiliar”, como na comédia romântica, ou nos filmes de ação que exploram bem a arte do riso, mais comum recentemente nos filmes de super-heróis;

2. Nichos: todas as plataformas digitais, locais públicos e privados continuam sendo ideais para a comédia, mas acredito que boa parte dela tenda a ser mais nichada que antes, feitas para públicos cada vez mais específicos: religiosos, ideológicos, ateus, conservadores etc.; 3. Comédia pública: a comédia pública — com público quero dizer espaços genéricos, sem um nicho aparente —, dos bares e circos, por exemplo, pode se tornar mais genérica e “neutra”, mas precisará de um bocado de inventividade. O cinema andou tentando fazer “comédia neutra”, por causa do politicamente correto, mas caiu na mesmice e em tantos problemas já elencados. Ou as formas de comédia pública mudam ou acabam as comédias no cinema, pois não se pagarão, gerando prejuízos para os estúdios, investidores e acionistas. Daí o ganho pode ser dos comediantes independentes em seus nichos;

4. Espaços virtuais: os espaços virtuais são as principais opções para a comédia independente, tendo que lutar contra um grande problema, que é o da superexposição causada pela internet — memes, virais etc. —, que fornece uma abundância de conteúdo humorístico, podendo gerar um certo tédio, cansaço e embotamento a conteúdos semelhantes, principalmente aos mais longos e complexos. Trato também desse tema no artigo “O fim da magia na arte circense”;

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O idioma é cada vez menos um desafio, sobretudo com o advento das inteligências artificiais para traduções de vídeos, mas as fronteiras culturais ainda são rígidas, mesmo em tempos globalizados. Um exemplo é o mercado chinês, importantíssimo para a indústria hollywoodiana, em termos financeiros, principalmente, mas nem todos os gêneros de cinema são compreendidos pela cultura chinesa, incluindo a comédia. Mais um motivo para a indústria cinematográfica demandar menos interesse em comédias com grande produção, pois é demasiado raro a existência e variedade de humor universal, mesmo o chamado humor físico.

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V. Da Catarse ao Sheol

A sina da comédia, por fim, é o velho ciclo do velho mundo, em qualquer lugar dele: levar graça, vida, cura, libertação . . . desgraça, morte, ferida, prisão. A comédia é humana — ai, Balzac! — e será feita e ajuizada pelos pecados e virtudes dos homens. A comédia tem alvo e, e por vezes, alvos perigosos. A comédia liberta em catarse, mas pode libertar monstros terríveis. A comédia é paradoxo, emaranhado indesatável. Que posso mais dizer? O grande temor e certeza: jamais saberemos lidar com aquilo que nos provoca o riso, senão pela aceitação ou censura. O caminho do meio é mero fingimento, ao que parece na experiência humana, sempre pela metade. A comédia é indestrutível, de qualquer sorte que seja, sempre encontrará súditos dispostos à catarse, ao sheol, ou a ambos.

E os tiranos em nossos peitos? Ai de nós!

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