Publicado no Digestivo Cultural, em 27 de maio de 2003
“Muerte a la inteligencia, Viva la muerte!” — Gen Milán-Astray
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A frase em epígrafe foi proferida no dia 12 de outubro de 1936, durante cerimônia na Universidade de Salamanca, cidade recentemente conquistada pelas forças franquistas, após o discurso de seu Reitor, Miguel de Unamuno. Neste, o famoso filósofo, visivelmente constrangido por ser obrigado a receber o chefe das tropas vitoriosas, acabara de dizer: “Há momentos em que ficar em silêncio é mentir. Vocês vencerão porque têm a força bruta. Mas não convencerão, porque para convencer precisam ser capazes de persuadir. E para persuadir, precisam ter o que mais lhes falta: Razão e Direito”. Escusado dizer que o genial filósofo saiu preso, com revólver na cabeça, expulso da Universidade. Veio a falecer dias depois, de um ataque cardíaco.
No Brasil não foi necessária nenhuma truculência, nenhuma violência para que a inteligência tivesse morrido em nossas Universidades e no mundinho dos que se autodenominam “intelectuais”. O processo aqui foi sub-reptício, dissimulado e dando todas as aparências de evolução do intelecto. Também, diferentemente dos estados fascistas e comunistas, onde se instala a barbárie pela força bruta, aqui a classe de pessoas que se apossou do pseudo-saber dá toda a impressão de bem pensante, pois é superficialmente bem falante. Matou-se a inteligência e exaltou-se a morte intelectual de uma forma tão dissimulada que na aparência nada de mau aconteceu. É como se as pessoas estivessem num velório, comemorando a vida de um defunto que já dá sinais de adiantada putrefação.
O processo se iniciou pela difusão do relativismo cultural, que sucedeu ao relativismo ético e moral. A palavra cultura reteve, até o advento deste relativismo, o significado grego de Paidéia e Areté, isto é, continha um conceito implícito de valor: existiam pessoas ou povos cultos ou incultos. Por outro lado, cultura era algo a ser adquirido com muito esforço. Denomino relativismo cultural ao movimento que modificou o conceito de cultura o qual, de uma alta expectativa de valor, passou a ser um simples conceito antropológico-descritivo (apud W. Jaeger): a totalidade das manifestações e formas de vida de qualquer sociedade, mesmo as mais primitivas.
Paralelamente tomou força o movimento chamado sociologia do conhecimento, que postula que todo conhecimento, inclusive o científico, é social ou culturalmente produzido, que tudo que se afirma como conhecimento é válido, pois só pode ser avaliado quando referido à “cultura” que o produziu. Abandona-se as possibilidades de validação, destrói-se a metodologia, privilegia-se a intuição – ou o chutômetro – como método de validação, substitui-se a lógica e a dedução pela estética (se intuo algo que a mim parece belo, isto é válido por si mesmo). É claro que a verdadeira intuição, produto da introspecção, tem seu valor como fonte de conhecimento mas não como método de validação e prova.
Deste modo, não existe mais nenhuma possibilidade de chegarmos a estabelecer qualquer conceito de verdade, pois se o conhecimento é “culturalmente produzido” os dados obtidos por árduas investigações científicas tem o mesmo valor – ou até nenhum – que qualquer conclusão de uma assembléia de auto denominados “sábios”. Este relativismo epistemológico é tão prejudicial quanto o relativismo ético ou moral, que afirma que qualquer princípio é válido, desde que referido à “cultura” que o produziu. Como corolário, estendeu-se o conceito de democracia, de conotação exclusivamente política, a todas as demais áreas da cultura e do conhecimento. Não se examina mais se alguma assertiva corresponde à verdade dos fatos, mas sim se foi decidida pela maioria de algum corpo coletivo, preferentemente “popular”.
A meditação solitária, fonte de todo ato de filosofar – e mesmo de todas as grandes descobertas científicas – é encarada com desprezo como arrogância, e aqueles que insistem em pratica-la são escorraçados do amplo debate popularesco, moralmente atacados, quando não ameaçados em sua integridade física. Ser um pensador, que antes era valorizado, passou a ser estigma. Valorizam-se belas formas ocas. O culto ao corpo, até mesmo artificialmente siliconizado, relegou a mente para a lata de lixo. A própria linguagem perdeu a beleza que o rigor gramatical lhe conferia e passou a ser um amontoado repetitivo de chavões e slogans facilmente absorvidos que tornam quem sabe usá-los em gênios do saber, aos olhos dos menos “afortunados”. Basta assistir um programa de televisão – qualquer um, com as raríssimas exceções de praxe – para ouvir um linguajar pseudo-erudito que mais parece um balbuciar sem nenhum significado lógico.
É claro que um povo que não pensa, que passa a vida olhando no espelho e atordoado por headphones e outras fontes de ruído ensurdecedor, é presa fácil de espertalhões que o manipulam com extrema facilidade. Acostumado a votações tacanhas, tipo Big Brother, incapazes de estabelecer nexos causais e a engolir uma sub-cultura especialmente preparada para ele, este povo fará qualquer coisa.
Sem desdenhar esta abordagem, creio que falta salientar os aspectos psicológicos envolvidos no processo. A doutrinação tem sempre dois pólos. Falta o do doutrinado, o do porquê esta doutrinação é tão facilmente absorvível pelos destinatários. É o que pretendo sucintamente fazer a seguir.
A oferta é irrecusável. O sujeito vê sua sub-cultura de botequim subitamente elevada ao nível de “cultura popular”, passa a ser lisonjeado por quem ele supõe pertencer à classe letrada que sempre admirou e invejou, de tocador de tamborim é promovido a “produtor cultural”. E o mais importante, sem custos, sem nenhum esforço pessoal de adquirir verdadeira Cultura através de árduos estudos e constante aperfeiçoamento. Sente-se inflado sem saber que estes pseudo-intelectuais estão lhe prestando o desserviço de afasta-lo das reais possibilidades que poderiam brotar de sua mente, caso se esforçasse.
Sim, porque apesar de minha explanação poder parecer arrogante, a verdade é o oposto: não creio que o sujeito de quem falo seja naturalmente burro e não pudesse se desenvolver se não aceitasse permanecer naquele estado de mediocridade a que é submetido. A razão é bem outra. O que lhe impede de crescer intelectualmente – salvo grosseiras exceções – é sua própria inveja dos que possuem aquilo que ele não acredita ter. Parece-lhe que quem tem, já nasceu sabendo tudo, não têm a menor idéia do quanto de esforço e sacrifício pessoal esteve envolvido no processo de aquisição de conhecimento genuíno.
Nem lhe passa pela cabeça que seu cortejador é também um medíocre pomposo, cheio de medalhas, títulos e currículos fáceis de obter por quem aprende os slogans do momento. Nem lhe passa pela cabeça que estes falsos intelectuais são, eles mesmos, invejosos dos que possuem conhecimento genuíno em qualquer área, e precisam não apenas atacar estes últimos, como impedir que o tal sujeito possa se desenvolver e ultrapassa-los. Fazem de tudo para impedir que desta população pobre e mulata possa surgir um novo Machado que faça sombra à sua mediocridade. Travestidos de democratas respeitosos fazem o possível para achatar o nível intelectual ao nível de sua mesmice cansativa.
Triunfo da mediocridade, muito bom o texto.
Parece que o absurdo contínuo vai ficando razoável, quase onipresente.
O coletivo imbecil.
O Frank Aguiar tem uma música cujo refrão diz: “a loira não é burra, tem preguiça de pensar”. Esse verso da música seria o resumo ideal do artigo do grande Heitor de Paola; porém direcionado não apenas às loiras.
O triunfo da mediocridade, seria o mesmo que dizer: o triunfo daqueles que tem preguiça de pensar