Em 2019, ficamos estupefatos ao ver a corte máxima, a grande defensora da Constituição Cidadã, atropelar o princípio mais elementar de Direito Penal para criar um novo crime, afrontando a separação dos poderes e não só ignorando, mas indo contra a vontade popular.

O novo crime foi de homofobia e transfobia[1], aproveitando o tipo penal de racismo da lei 7716/1989. Em plena luz do dia, por oito votos a três[2], decretou-se a relativização do princípio da reserva legal, que determina que apenas por lei em sentido estrito se pode criar novos crimes, não podendo se incriminar uma conduta nem por analogia e nem por uma simples interpretação extensiva dos tipos penais existentes.

Falou-se em analogia incriminatória, o que é vedado, porém nem isso foi. A analogia, no Direito, pressupõe que haja a mesma razão[3] no que se está comparando.  Assim, se a lei criminaliza a discriminação por motivo de cor e procedência nacional, seria correto dizer que, analogamente, seres sencientes azuis de outros planetas não podem ser discriminados. Não há na lei, entretanto, nenhuma discriminação análoga à motivada por orientação sexual ou “identidade de gênero”.

Mas é aquela velha história: onde passa boi, passa boiada.  E poucos notaram o tamanho da porteira que foi aberta.

O Supremo começou a prender pessoas em um novo “inquérito do fim do mundo”[4], desta vez por eles denominado “inquérito dos atos antidemocráticos”, de número 4828[5].

Nesse inquérito, já foram presos por crimes da Lei de Segurança Nacional ao menos seis pessoas: Oswaldo Eustáquio Filho, Sara Fernanda Giromini (“Sara Winter”) e outros quatro integrantes do grupo “300 do Brasil”.

O primeiro aspecto a se considerar é que não se sabe exatamente que fatos foram esses que se consideraram atentados à atual ordem constitucional.  Mas, como é óbvio, não saber por qual fato se está sendo investigado é parte da estratégia de deixar todos na insegurança de não saber exatamente o que está sendo considerado crime e, também, impossibilitar a desnecessária defesa, já que as medidas judiciais contra ele sempre fracassam (ações de habeas corpus da Sara Winter[6], do Arthur Weintraub[7] e a própria ADPF 572, todas indeferidas). Como demonstrei em A Vingança do STF, o inquérito é o próprio processo penal condenatório.

Há um ditado sobre a importância da defesa num processo inquisitório, atribuído ao célebre inquisidor Torquemada: “advogados são desnecessários – os inocentes não precisam e os culpados não merecem”[8]. Entretanto, como já disse no artigo acima, o processo inquisitivo seria um avanço em relação ao que estamos vendo.

No inquérito 4828 desenvolveu-se não só um mecanismo instantâneo de aplicação da pena como também de produção de novos tipos penais.

Entretanto, antes vamos analisar uma questão técnica: os investigados estão sendo presos com base na lei de prisão temporária (lei 7960/89). Essa lei traz um rol fechado de crimes em que cabe a medida, e os crimes da Lei de Segurança Nacional (LSN) não está nessa lista. Determinou-se a prisão, por isso, na hipótese de quadrilha (art. 1º, III, “l”).  Os presos seriam todos integrantes de uma mesma associação criminosa[9] voltada para a prática de atos antidemocráticos, supostamente definidos como crime na LSN.

Ocorre que a LSN possui um tipo penal específico de associação criminosa para o cometimento dos crimes lá previstos[10] e, de acordo com o princípio da especialidade (que se aprende nas primeiras aulas de Direito Penal), devemos sempre aplicar a lei penal especial em relação à lei geral. Há, portanto, uma outra analogia aqui, porém implícita, já que isso nem foi discutido na decisão (talvez o ministro desconheça o tipo especial da LSN, ou os critérios de resolução de conflitos entre normas penais, ou fez uma analogia entre “quadrilha” e qualquer tipo de associação criminosa, ou fez o que lhe deu vontade).

Decreta-se, então, a temporária por 5 dias, renováveis por mais 5 (período máximo para o crime de quadrilha) e, ao final, em vez de se restituir plenamente a liberdade do “investigado”, sobre ele recaem várias medidas cautelares.

A decisão inicial que decreta a prisão nunca é conhecida, nem mesmo pelos investigados[11]. Isto serve para deixar o novo tipo penal bem “aberto”: a sociedade não sabe exatamente o motivo da prisão, mas tem alguma ideia das novas condutas criminosas que, descumpridas, levam à prisão.

Vencido o prazo da prisão temporária, a liberdade devolvida ao investigado é plena. Por isso, não cabe imposição de medidas cautelares se não houver justa causa para a decretação da prisão preventiva (não mais temporária). A prisão preventiva é espécie de prisão provisória que demanda provas suficientes para já propor a ação penal.

Na decisão que determinou as medidas cautelares ao jornalista Oswaldo Eustáquio, “substituindo” a prisão temporária, a Procuradoria-Geral da República se manifestou contrariamente ao ver que não seria cabível a prisão preventiva.  Isso porque o descumprimento das medidas cautelares ensejaria, necessariamente, a reconversão em prisão preventiva[12].  Ademais, com a prisão, o MPF tem que oferecer a denúncia por algum crime em que caiba a prisão preventiva.

Vale conferir a literalidade da manifestação:

  1. A Procuradoria Geral da República, não obstante, entende inexistentes, pelo menos por ora, motivos para se determinar a preventiva, razão pela qual não seria possível substituí-la por medidas previstas no 319 do Código de Processo Penal.
  2. Ressalta que a constrição foi imposta para garantir a eficácia dos varejamentos e retenções autorizados nestes autos, mas que deixaram de ser efetivadas por conta das sucessivas evasões do custodiado e da ausência de residência fixa.
  3. Uma vez declinado o logradouro e realizada nele, finalmente, a busca e apreensão, não há porque manter o investigado detido sem que haja necessidade de se assegurar a ordem pública ou econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Não permanecendo assim as coisas, a opinião do titular da ação penal haverá de ser outra.[13]

As medidas cautelares constantes dessa decisão impõem diversas limitações à liberdade ambulatorial, de expressão, de contatos com pessoas e organizações, dentre outras medidas que ferem de morte a cidadania do seu destinatário primário, o jornalista investigado, mas também de todos os brasileiros, destinatários secundários desses novos tipos penais.

São dezenas de pessoas e organizações, inclusive de mídia, com as quais o jornalista não pode mais manter contato. Fica implícito, portanto, que todos integrariam a mesma associação criminosa a que se refere a nossa corte máxima (com a participação, inclusive, de parlamentares). Manter contato com qualquer uma dessas pessoas pode ser considerado pelo STF início de crime. Inclusive consigo próprio. Num lapso de redação, deixaram o nome do próprio Oswaldo Eustáquio, demonstrando que se trata de uma lista genérica, aplicável a todos os investigados e, por que não, a todos os brasileiros.

Considerando a dificuldade de acesso aos fatos que têm sido considerado criminosos pela corte, a fim de fazer uma indução mais perfeita, os novos tipos penais podem ser resumidos em “Ofender ou se manifestar contra o Supremo Tribunal Federal e seus ministros por quaisquer meios”. O crime exige, porém, um “especial fim de agir”, favorecer o Presidente da República, ou uma qualidade do autor: ser ele “bolsonarista”. A dedução é óbvia, posto que muitos outros já haviam atacado ferozmente o STF e seus ministros, mas suas condutas não foram sequer apuradas[14].

Esses são o que se chamam em Direito Penal de “preceito primário”: as condutas proibidas. Ficaria faltando o “preceito secundário”: a pena.  Porém ela está implícita na própria decisão.  Sendo medida cautelar, seu descumprimento possibilita a prisão preventiva, prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP).  Formam-se daí os novos crimes: preceitos primários (as condutas) e secundário (a pena).

Pena de prisão sem escala penal alguma, entretanto.  Pelo tempo da investigação ou, mais propriamente, até se mudar de ideia. Podem ser dias, podem ser anos. Caso o Ministério Público Federal simplesmente arquive os autos, o Supremo pode simplesmente ignorar, como já foi feito anteriormente com o arquivamento do inquérito 4781 pela ex-Procuradora-Geral da República Raquel Dodge.[15]

E não se pense que isso só se aplica à pessoa citada na decisão e que não vale para todos os brasileiros.  De modo algum.  A primeira prisão, a “temporária”, tem, desde já, função retributiva/punitiva e de prevenção geral e especial.  A função de prevenção especial se refere ao condenado que é preso primeiramente como forma de aviso: o novo crime existe e é vigente, não o cometa de novo ou será preso e, desta vez, sem prazo.

A mesma mensagem é passada para o resto da sociedade, no que se chama de prevenção geral.  Ao ver uma pessoa ser sancionada pelo novo crime, todos entendem que aquela conduta não pode ser cometida, sob pena de também serem presos.

Já a pena se divide em duas: primeiro a reclusão de 5 a 10 dias e, depois, imposição de várias penas restritivas de Direito (onde também constam os novos tipos penais de modo explícito) com a ameaça de “regressão de regime”: o retorno ao regime fechado por tempo indeterminado no caso de “reincidência” específica.

Este é o novo Direito, o novo normal, ditado pelo novo pantokratos, que tudo rege, que tudo cria e que tudo vê.

Cleber de Oliveira Tavares Neto é membro da Associação do MP Pró Sociedade e Procurador da República. Siga-o nas redes sociais Instagram, Parler, twitter, youtube e Facebook.

 

[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010 (acesso em 15/07/2020)

[2] Como ocorreu agora no julgamento do “inquérito do fim do mundo” na ADPF 572, apenas o ministro Marco Aurelio de Melo votou tecnicamente, respeitando o princípio da reserva legal e o princípio da separação dos poderes – além de apontar a obviedade da inadequação do uso do Mando de Injunção.

[3] ubi eadem ratio ibi eadem legis

[4] Termo usado pelo ministro Marco Aurelio de Melo para designar o inquérito 4781. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/06/18/interna_politica,864978/ministro-marco-aurelio-vota-pelo-fim-da-investigacao-das-fake-news-no.shtml (acesso em 15/07/2020)

[5] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446954&ori=1 (acesso em 15/07/2020)

[6] A covardia aqui foi tão grande que o HC não foi nem apreciado pela falta de documentos que “comprovassem” a prisão arbitrária: “A ausência de elementos necessários à comprovação das alegações feitas, que são ônus indiscutível do impetrante, não podem ser superadas pela presente impetração”.  Entretanto, a própria inexistência da decisão que determinou a prisão é ilegal. Os advogados afirmaram, a todo tempo, a inexistência da decisão. Determinar a alguém que comprove a inexistência de algo é o que se chama em Direito de “prova diabólica”.  A justificativa, entretanto, foi apenas para explicitar a falta de razão a quem quiser enfrentar o tribunal. O verdadeiro motivo para o não julgamento é que não cabe Habeas Corpus para atos de ministros do STF.  Uma vez decretada a prisão, ela só se conclui pela vontade de quem a decretou. http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=445960 e https://www.jusbrasil.com.br/diarios/303390728/stf-23-06-2020-pg-162?ref=next_button (acesso em 15/07/2020)

[7] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=445977 (acesso em 15/07/2020)

[8] De memória. Não sei a redação exata e nem se ele efetivamente o disse.

[9] O crime de quadrilha foi substituído pelo crime de Associação Criminosa, constante do mesmo artigo do Código penal, o 288, porém com conteúdo mais amplo.  Por isso continua sendo cabível a prisão temporária mesmo sendo um novo crime, com base na existência de uma continuidade normativo-típica entre os dois crimes.

[10] Art. 16 – Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça.    Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.

 

[11] https://brasilsemmedo.com/defesa-de-sara-winter-nao-teve-acesso-aos-autos-do-inquerito/ (acesso em 16/07/2020).

[12] Arts. 282, §4º, e 312, §1º, ambos do Código de Processo Penal.

[13] Íntegra da decisão em https://static.poder360.com.br/2020/07/Decisa%CC%83o-Medidas-cautelares-diversas-OES.pdf (acesso em 16/07/2020)

[14] Vídeo do canal de facebook de Gil Diniz (@carteiroreaca) reúne falas críticas de “Arthur do Val, Fernando Holiday, Joice Hasselmann, Alexandre Frota e outros nomes da Nova Esquerda”. https://www.facebook.com/carteiroreaca/videos/arthur-do-val-fernando-holiday-joice-hasselmann-alexandre-frota-e-outros-nomes-d/260931951818773/ (acesso em 16/07/2020)

[15] https://www.conjur.com.br/2019-abr-16/alexandre-rejeita-arquivamento-inquerito-ameacas-stf